Dignidade

20:24 postado por Thiago Terenzi

E o principal: nem por um instante ela chorou. Ficou ali com seus olhares anestesiados, rosto plastificado. Mas a face continuou – e continuaria sempre – seca, sem qualquer sinal de choro. Não que lhe faltasse motivo ou dor, nada disso: era que o choro borraria a maquiagem. E era preciso manter a dignidade, nada de escândalos cinematográficos – ah, eles estão tão fora de moda... –, é que era preciso a dignidade acima de tudo. Era juntar os cacos, recolocar o barquinho na água e ir. Ir.

Conto de Fadas

14:12 postado por Thiago Terenzi


Era uma vez um menino sozinho. Cabelo ao vento, sorriso no rosto, olhares perdidos em meio ao novo, mas – e acima de tudo – um menino: sozinho. Justo num mundo onde era tão perigoso estar só – ele estava. Todos sabiam dos perigos da solidão. To-dos. Tu mesmo: onde apoiastes o corpo no último inverno? ele, o menino, dormira em meio ao frio e à escuridão – logo ele que tinha tanto medo de escuro...

Eu também tenho medo do escuro – mas como já não sou menino, disfarço. Ele não: com uma coragem indizivelmente superior à minha, o menino permitia-se ao medo. É que era necessária uma bravura heróica para permitir-se a certas coisas. E ele – ah, ele não sabia disso – mas era herói. Não que lhe fosse grandioso ser herói. Não era. Não há grandiosidade na solidão. Mas é que ao permitir-se ao medo, o garoto fazia algo raro: estava sendo ele mesmo. Sem máscaras, sem esconder as próprias fraquezas: simplesmente vivia.

Decerto que ele pouco importaria se, para findar-lhe a solidão, fosse necessário também abdicar da liberdade. Mas é que a solidão lhe era característica inata – o que fazer? o que esperar de um menino sozinho? Certas vezes ele dependurava-se na janela da sala – que tinha vista para a rua – e esperava as crianças vizinhas chamarem-no para fazer-qualquer-coisa. Nunca chamavam.

E ele sabia que o mundo era por demais perigoso: não se podia estar só. O que fazer quando, anos mais tarde, a dor lhe doesse? suportaria sozinho a vida? justo a vida que era tão vasta, como enfrentá-la só? Era preciso ter para quem ligar quarta-feira às quatro da manhã – e mais: era preciso ter com quem beber garrafas de vodca e vomitar a dor. Era necessário ter com quem discutir inutilmente Nietzsche ou Lacan numa mesa de bar ou sorrir enquanto constata-se a fragilidade da vida do outro – era imprescindível ter com quem dividir o cigarro ou a dor. E ele não teria nada disso...

Não que já soubesse, garoto que era, dos perigos da vida futura – mas é que alguma coisa-sem-nome-nem-rosto lhe dizia em sussurros: é necessário ter alguém que... (e então vinha o silêncio). E apenas anos mais tarde é que descobriria que era preciso que o telefone tocasse sexta-feira à noite para livrar-se da madrugada fria.

Mas desde muito jovem o garoto sabia que o telefone jamais tocaria. Ele era assim: um menino sozinho. E então inventava fadas e dragões num mundo que lhe era particular – e lhe era também verdadeiro. O menino nunca se apegara à realidade concreta das coisas, de modo que lhe era fácil criar um mundo de fadas e chamá-lo de real.

E então quando o frio doía bastante e o escuro parecia ser inviolável – ah, daí ele sentia todo o calor das fadas lhe proteger. E elas eram tão iluminadas que mesmo naquele escuro completo não havia o que temer. É que as fadas – e também os dragões e os duendes – eles entendem o medo. E ao menino bastava o entendimento. As criaturas fantásticas sabiam que para a dor cessar bastava o abraço quente e o olhar dizendo dorme-que-passa. E então o garoto dormia. Não era necessária uma única palavra: bastava-lhe o abraço.

As fadas e os duendes e os dragões são criaturas incríveis: eles simplesmente entendem. E mudos – porque não há sequer uma palavra a se dizer –, abraçam. É que no fim o garoto buscava apenas o entendimento e não a palavra. Ele buscava o abraço. No fim as palavras haviam sido todas em vão – porque as palavras são falhas e são de fato todas em vão. Ele queria o não-verbal, o espaço vazio entre as letras.

Mas então o menino cresceu e deixou de acreditar nos contos de fadas.

Para seja-lá-qual-direção

13:30 postado por Thiago Terenzi

Vai e seja feliz. Vai e tenha uma vida bem bonita, que eu me tenho também. Não: eu não tenho nada, nem você terá. Mas vai e seja feliz, que a tentativa liberta. Vai e siga um caminho bem florido, que eu sempre estarei aqui. Vai sem medo, olhar altivo e forte, vai com teu sorriso e teus amigos.

Vai que a dor de agora é coisa pouca, passa – vai passar. Levanta e te seja feliz, que eu desejo mil coisas bonitas. Desejo um sol bem bonito num jardim lindo com uma grama verde e um lago límpido, desses que em cidade grande não tem. Desejo você no jardim deitada sob a árvore ouvindo músicas de liberdade. Desejo que seja primavera e o clima esteja bom. Desejo um clima sempre bom.

Vai que eu te quero só coisas boas. É que o nosso jardim morreu e nos perdemos em meio à morte. E não há como nos acharmos. Não nos somos nós dois. E não há nada mais autodestrutivo que tentar sem fé. E não há fé.

Vai e te torna feliz de novo. E um dia, quem sabe, a gente finge que é dezembro e finge ser reveillon e eu pergunto se queres vir aqui, que aqui tem cerveja e tem vinho também e que daqui dá pra ver os fogos bem de perto da janela e que eu até faço uma comida e alugo um filme desses de comédia romântica em que em meio a tantos desencontros, no fim, eles terminam juntos. E então você responde que não sabe, que combinou com amigos um reveillon num clube qualquer, mas que também nem quer tanto sair com eles. E eu insisto e você topa e a gente se vê pela primeira vez com uma sensação estranhíssima de que já nos conhecemos antes e que temos uma vida inteira em comum. Mas deve ser apenas impressão nossa, eu digo. Eu sempre tenho a impressão de já conhecer as pessoas.

E então, quem sabe, nesse outro reveillon, os planetas se alinhem em seja-lá-que-lugar e os astros apontem para seja-lá-qual-direção e a gente seja feliz.

A ausência de

18:59 postado por Thiago Terenzi


E o dia nascera. Mesmo havendo a dor – e ela estava ali –, o sol surgia forte e quente e queimando a perna de varizes mofadas daquele homem. Era um homem velho murcho doído. Dormindo às três da tarde de uma terça-feira e o sol quente, sempre quente. Era um velho sem rumo. A barba mal feita, pêlos brancos aqui e ali, aquele cabelo seboso entre o liso e o anelado, aquele rosto amarrotado de quem dormiu a vida. De quem comeu a vida e não engoliu.

E o homem, perigosamente pálido, levantara da cama. O sol quente, sempre quente, queimava o quarto sempre àquele horário. Ele até queria comprar cortinas e espalhar pela casa e dizer adeus de vez ao sol, mas é que nunca saía do apartamento, quando saía não lembrava de comprar coisa alguma. Lembrou é de ascender o cigarro, Marlboro vermelho em jejum, puxou o ar com voracidade, engoliu a fumaça, gosto de nicotina na garganta, depois assoprou e viu aquele ar cinza impregnar o carpete já meio amarelado queimado nos cantos. Veio à boca aquele gosto seco de ressaca, aquela sensação de boca encardida. Fumou outro cigarro e ouviu Janis no vinil.

Depois preparou a bebida: duas pedras de gelo e uísque até a borda. O gelo era mais pelo barulho – o tin-tin-tin da pedra no copo tinha lá seu glamour. Então fechou os olhos e imitou a cantora fazendo em falsete a voz rouca gritando “come on and cry, cry baby, cry baby, cry baby”. Abaixou o volume para ver se o telefone tocava, pensou que um amigo poderia ligar, perguntar como estava e chamar pra encher a cara no fim de semana que teria festa na casa de não-sei-quem e que era só levar dez latas de cerveja que a vodca seria de graça – mas o telefone nunca tocava. Nunca. Então ascendeu outro cigarro, o maço estava acabando, restava uns dois ou três. E então ascendeu e fumou compulsivamente, naquele mesmo ritual voraz de engolir a fumaça. O gosto de ressaca ainda secava sua boca.

Em meio ao tédio, pensou que poderia ligar para uma amiga e falar “gata, vamos beber hoje? É que eu tô com saudades e preciso de amigos”. E então ele seria sincero e diria que nem gostava tanto assim dela, mas é que não restara muitos outros. “É que é todo mundo feliz e eu aqui com essa dor no peito, essa coisa atravessada na garganta. Daí lembrei de você que sempre foi meio doída e resolvi ligar”. E então ela toparia e bateria àquela porta às oito e levaria uma garrafa de vodca meia-boca para misturar na coca. Eles chorariam juntos e depois trepariam uma única vez porque no fundo nem havia tanto tesão assim. Depois dormiriam nus, cada um no seu canto, até dar três horas da tarde e o sol, maldito sol, expulsá-los do sono.

Mas então o homem lembrou que nem tinha mais o telefone dela, que perdera o celular numa noite qualquer, provavelmente bêbado. Lembrou que não tinha o telefone de ninguém. Franziu a testa tentando buscar na memória números ou e-mails mas foi em vão. Decidiu comer alguma coisa, estava com fome. Cheeseburguer de microondas, tudo artificial. Ligou o aparelho, colocou o hambúrguer, um minuto e vinte. Encheu um copo com coca porque odiava comer com álcool. E comeu.

Depois ainda bebeu o resto do uísque, fumou os últimos dois ou três cigarros e ouviu Janis depois Caetano depois Cazuza depois dormiu.

O Espelho ou A gente é assim mesmo ou Segura a minha mão, por favor ou Sobre algum Fim ou Me ensina alguma coisa ou Grita que eu me grito também ou ,

04:41 postado por Thiago Terenzi

A gente vai e vive e tenta ser feliz mas na verdade não importa, cara, nunca importa, a gente é triste assim mesmo e a gente enlouquece e talvez na loucura é que cheguemos mais perto do que somos de verdade, cara, porque a gente não é certinho assim não, cara, a gente é caos, sabe? a vontade é falar mil palavras sem nexo só pelo som, cara, porque eu sou fascinado com sons e nada tem que fazer sentido porque no final é tudo loucura mesmo no final pouco importa qualquer coisa. E eu agora escrevo mal e escrevo feio e sem sentido mas é que é o necessário entende? é que aqui dentro é tudo caos e eu só quero que você feche os olhos e sinta e pare de buscar a porra do sentido das coisas porque isso só atrapalha, cara, isso só atrapalha, nada tem que fazer sentido não. E se aqui dentro é tudo escuro de nada vale escrever bonito, cara, que aqui é tudo cinza, é aquela vontade de pegar o carro e beber todas e acelerar e ver o que é que dá, sabe? porque a gente vai perdendo a sanidade, cara, e a insanidade é muito mais completa porque não tem limites. Só que é perigosa. e hoje eu peguei o carro de novo, cara, e quase fui direto na curva é aquele milésimo de segundo salvador que fez recuar, cara, daí o carro só rodou e nada mais. Há alguns pontos em que você nunca vai chegar, cara, porque você é diferente é inocente é racional é sei-lá-o-que, mas você nunca vai chegar, cara, você nunca vai pirar porque pirar é pra quem é por natureza desprendido e isso não é bom e eu estou pirando, cara, justo agora que eu estava encontrando um caminho perdi todos de uma só vez, cara, não restou nada, só essa dor no peito e a razão indo embora e se perdendo, cara, você não sabe o que é isso, cara, acredite. Justo quando eu estava encontranto um ponto de apoio, cara, tentando não pirar você estragou tudo eu estraguei tudo você fez tudo errado cara, agora já era. Dá licença que eu preciso gritar, cara, que a coisa presa aqui está doendo e não quer sair, vou é pegar o carro agora às cinco e meia da madrugada fazer qualquer coisa que nem sei o que, mas fica tranqüilo que não vai acontecer nada não, cara, amanhã vai estar tudo bem eu só perdi alguma coisa que nem sei o que é mas que me controlava a racionalidade, cara, agora já era. Em algum momento perde-se o controle e daí já era.

A busca de

16:48 postado por Thiago Terenzi

Se algo de aprendizagem restara àquela garota, este era que: ser mulher dói. E doía-lhe. Doía-lhe de uma dor claustrofóbica de impossibilidade contida. Era-lhe uma tristeza resignada de o-mundo-é-assim-mesmo. E o mundo lhe era assim mesmo. Mesmo com seu olhar decidido e sua coragem plastificada travestida em mulher pós-moderna – ah, mesmo com o rosto ao vento, o mundo doía.

E se algo ficou de tudo isso – por Deus, se algo ficou foi uma compreensão mutua que dividia com todas as mulheres. Ficou a compreensão daquela dor de não pertencer, de estar num não-lugar. Talvez isso a fizesse mulher. Talvez isso a fizesse mãe, porque das mães cobra-se o entendimento. E ela entendia. O que fazer de uma mulher cuja dor lhe é revelada? melhor seria a dor oculta...

E dele, do homem, ficara somente a dor... ele – justo ele – trouxera à garota o entendimento. É que ser mulher era assim mesmo: havia a dor do não-poder. Não lhe era permitido usar certas roupas nem a vaidade de mostrar-se em fotografias nem a dignidade de ter um trabalho. Até como portar-se num banheiro fora-lhe ensinado. E era preciso lutar para simplesmente ser. Era preciso esquecer – e provar o esquecimento – do passado, das noites de bebedeira, das trepadas imorais – mulher, para não escapulir do gênero, mulher, dessas de verdade, não bebe nem usa drogas nem dá no primeiro encontro nem trabalha nem se mostra em fotografias de Orkut nem usa roupas que lhe deixe a beleza à mostra nem vive se da vida não bastar-lhe o homem.

Então – então diz-me, por favor: como tornaria-se, a mulher, ela mesma? como tornar-te ti mesmo se o ti mesmo lhe é proibido? Como sentir-se em casa numa casa que nunca lhe pertenceu? A ela, como mulher, restou tentar caber-se aos moldes. Tentou – juro-te que tentou. Não coube.

Restou-lhe a dualidade feminina: a máscara ou a dor.

Fúria

13:45 postado por Thiago Terenzi

– Eu te amo – disse a mulher.

Mas não amava nada. Estava tudo errado, tudo. Tu-do. Confundia-se amor e egoísmo e esquecia-se do amor-próprio, que é necessário. Achava-se que amor era querer-o-outro-pra-si, mas não é, cara, não é. Esquecia-se que amor é muito mais querer-bem-ao-outro pura e simplesmente. Pensava-se que querer bastante e com urgência fosse amor. Estava tudo errado, cara. Media-se amor pela urgência, mas media-se a coisa errada. Amor é de graça, juro. É sereno, calmaria. O resto é egoísmo destrutivo, ciúme, possessividade.

– Amou coisa alguma – respondeu – você me foi apaixonado, gata, e é. Passa o cigarro, por favor, que quero a fumaça.

E fumou. Fumou. Fumou até que a fumaça o engolisse e bebeu seu copo de vodca com coca num só gole – bebida queimando a garganta naquele gosto insosso de vômito preso na boca. Encheu novamente, mais vodca que coca, naquela cor clarinha, quase transparente. Forte pra caralho. Bebeu tudo novamente e quis mais. Quis era pegar o carro às quatro e quinze da manhã e dirigir sem rumo, bêbado, e quem sabe parar numa blitz da Lei Seca, desacatar dois policiais, vomitar em outro, resistir à prisão e se foder.

E, no fim, iria ela num desses inferninhos sujos da cidade, em que as pessoas fazem sexo e cheiram pó enquanto toca rock de péssima qualidade e iria beijar a boca de outros caras sujos que freqüentam lugares sujos e bebem bebidas sujas. E beijaria sem vontade um desses caras, só por beijar, o que é ainda mais imundo e sujo e cruel. Estava tudo errado, cara. Tu-do.

– É amor porra nenhuma, que amor é altruísmo. Deixa eu te ensinar, gata: paixão que é urgente, quer-se a pessoa só pra você o tempo todo, prefere-se isso ou morrer. Paixão que é avassaladora, que não pensa nas conseqüências e é extremamente egoísta porque sufoca o outro pra te fazer bem, gata. Mas mesmo assim ela é necessária, é intensa. O problema é que paixão um dia acaba. Sobra o amor, então, que é a vontade serena de estar junto, que é aquela sensação de segurança quando vê o outro. Como se nada mais faltasse. É sereno, calmo, constrói ao invés de destruir. E disso, gata, será que tem alguma coisa aí?

E então ela chorou, imunda cheirando a cigarro e suor de outro homem. Chorou como uma criança, por horas e horas. E ele fumou outro cigarro e depois outro e bebeu a vodca. E percebeu que aquele choro lhe embrulhava o estômago. Estava tudo errado, cara, tudo. E desejou com extrema raiva estar numa boate e beber o mundo e trepar com três mulheres diferentes ao mesmo tempo, mas no segundo seguinte lembrou que isso era egoísmo, que era isso que matava o amor e que matava os dois. Lembrou que essa dor de agora não era o amor doendo – o amor doía, mas o que se sobrepunha era a raiva, que é egoísmo.

E então, cansado do mundo por hoje, dormiu.

A Velha

19:01 postado por Thiago Terenzi

Era uma mulher de face rugosa e clara. Era alta, branquíssima e de olhos negros. Mas, sobretudo, uma mulher de rugas. Era uma mulher velha e branca que morava no terceiro andar de um prédio velho e branco. Eram-se – a velha e o prédio – irmãos de alma: padeciam da mesma dor. A velha, que resistia ao inevitável destino humano, abraçava o prédio, que, por sua vez, suportava calado seu destino: o de ser prédio velho numa cidade de edifícios velozes.

Apesar da dor, ela vivia – era preciso viver porque viver era o certo. E, então, justamente por fazer o certo, ela fazia compras no supermercado. Comprava, a velha, dois quilos de arroz simplesmente porque gostava de arroz e almoçava apenas arroz. Quando jovem, não lhe permitiam comer o que queria. “Almoço bom tem que ter muitas cores”, diziam-lhe. Agora, velha e só, comia arroz por revolta particular.

E, satisfeita consigo mesma, a velha entrou no prédio segurando o fruto de sua liberdade – um saco de dois quilos de arroz. Segurava-o firme por entre os dedos e a palma da mão. Segurava-o assim pois já era velha e não podia dar-se ao luxo de deixar o arroz cair. Seria a prova de sua incapacidade de mulher antiga – e ela queria resistir como o prédio que, embora velho, jamais cedera-se a uma infiltração sequer. Ela queria ser o prédio.

Próximo à portaria, em frente à escada e aos três lances de degraus que a esperavam, a velha descansou por apenas um instante. Era necessário ser forte para, em plena velhice, morar no terceiro andar de um prédio antigo.

Foi então que um rapaz loiro e jovem oferece-lhe ajuda enquanto descia as escadas. Era jovem, forte e bonito. Era desses que encarava os degraus sem temor. Olhar curioso e rebelde, eriçado. Disse-lhe “deixa que levo as compras para a senhora”. A velha recusou prontamente. Levar-lhe o almoço era levar-lhe a vida. Era-lhe tirar o último desafio que restara. Levar o arroz até a cozinha era sua – e apenas sua – tarefa. Se aceitasse a cortesia do rapaz, seria mulher sem missão. Seria, então, uma velha sem vida, apática, cujo destino fora-lhe roubado.

E, com a recusa, o rapaz foi embora e a mulher, solitária, permaneceu inquieta sobre a escada. Foi quando a sacola pesou sobre os seus dedos e, não sem antes resistir com bravura, a velha falhou. Seus dedos frágeis não resistiram e cederam. Um estrondo seco denunciou que os dois quilos de arroz ganhavam agora o chão. Justo ela que lutara bravamente para preservar os restos de sua dignidade – justo ela falhara. Ela que entendia – e justamente por este motivo – amava a dor do prédio em que morava – essa mesma mulher agora definhava sobre a escadaria chorando um choro de missão falha. Ela que só queria viver porque assim lhe parecia ser o certo, ela agora descobria-se demasiadamente fraca para a vida.

E sentiu-se velha pela primeira vez. Sentiu-se inapta para a vida – e o principal: inapta para o amor: quem amaria uma velha cujas rugas tomavam a face inteira? A velha, de repente, não mais sentiu-se mulher. O que a fazia feminina? ser mulher era amor-próprio. O feminino é antítese em seu próprio desafio. Mas ela... ela nem ao menos conseguia ser. Ela havia falhado em seu mais orgânico desafio. E agora sentia-se incapaz de despertar desejo. Nem sequer sabia desejar.

Foi quando percebeu que viver era também abrir mão. Soube-se, então, sem saber como sabia, que a dor era vida e que as missões não eram necessariamente feitas para a vitória. Soube que a derrota lhe fazia humana e que ser mulher era mais que desejo – ser mulher era também falhar e chorar sobre a escada fria.

Percebeu, então, que a vitória não era o único caminho. E o dela era o outro. Ela que sofrera tanto porque diziam-lhe que devia ser feliz – justo ela que tentou porque lhe parecia o certo tentar, justo ela descobriu, aos setenta e oito anos, que falhar também é caminho.

E triste – mas de uma tristeza consciente que lhe era de direito – a velha subiu as escadas lentamente, já sem o arroz, entrou em seu apartamento e observou da janela da sala as pessoas vivendo lá fora.

Parecia tudo tão normal...

Cartas a ninguém

14:36 postado por Thiago Terenzi

Belo Horizonte, 15 de setembro de 2009



Escrevo sem um interlocutor. Não entendo – mas pareceu-me, no momento em que iniciei as letras, pareceu-me fazer sentido. Talvez criar um personagem me seja necessário. O personagem é aquele a quem escrevo. Sinto-o apenas difuso, sem rosto, em cores acinzentadas. Mas sua presença basta. Quero de ti, meu personagem, apenas o pretexto à carta. Começo a depender de minhas próprias criações. Me preocupo.

É que tirei férias de mim. Dois dias. Deito sobre a cama e fico, apenas fico, entende? Não penso nem faço planos nem me sou. Nada. Existo, apenas, ou quase isso. E nesses momentos não dói nem é calor. É algo como a ausência da sensibilidade – mas que não é descrença. É superior: é não ter a necessidade de crer. É ausência infinita e indolor. É como se nesses momentos a existência retornasse ao ponto anterior. Existo? não sei.

Entendo sua preocupação. Sei do perigo em transitar em meio ao não-existir. Mas é que quando a dor transborda é preciso escolher, sabe? Então escolhi. E me são apenas dois dias. Tempo necessário para recuperar o caminho – recolher os cacos de dignidade que restam e recuperar o caminho. E no mais, aproveitei o tempo e li Clarice. Li muito. Transbordei. Reli “Um sopro de vida” em um único espasmo e, então, reli novamente trechos e trechos e, por fim, quando os olhos tornaram-se falhos, fechei-os e ouvi as versões em áudio de contos de Clarice. Eram narrados por Aracy Balabanian. Chocante.

A leitura de agora trouxe algo novo. Não tive medo dos olhos de Clarice – eu que, por Deus, sempre evitei encará-los de frente. Li Clarice Lispector altivo e, sob a mesma altivez, ela me leu. É que dessa vez era eu tão pesado quanto seu próprio peso. A dor de existir resignava-me tanto quanto sempre resignou Clarice. Éramos nós dividindo a mesma melancolia. Clarice era eu.

Tenho medo de jamais voltar a escrever. Juro-te de joelhos isto. Caio Fernando Abreu, me disseram, parou de ler Clarice por esse motivo. Entendo seu medo: não há o que ser dito. Clarice intimida todos nós que escrevemos, entende? Não há o que ser dito. Quis escrever um pouco a noitinha e não consegui. Se escrevesse o que minha alma implorava, seria a íntegra de “A procura de uma dignidade”. Não escrevi.

Falando em Caio Fernando Abreu, tenho lido uma tese de doutorado sobre sua obra. Ele é outro que sempre me pareceu triste. Parece ser um daqueles que foi à vida, arriscou-se e, no fim, rendeu-se à dor. Clarice, ao que me parece, nasceu rendida. Eu tento não me render – esta negação da existência através da qual me sou nos últimos dois dias, embora pareça o contrário, é tentativa de não me render, acredite. Será que, no fim, o caminho é mesmo desistir? luto contra!, sabe?

No fim, o caminho é tentar manter a sanidade. Tento fazer minhas coisinhas, me nortear. Os mais sensíveis, como a gente, temos que estar sempre atentos: se perdermos o caminho, nunca mais encontramos. Temos que manter um pé no racional. Se não, se o copo derramar e a gente não segurar, aí não tem mais jeito. Aí a gente acaba como tantos que viviam por viver, sem sorrisos ou lágrimas, sem sentir absolutamente nada. E é caminho sem volta. Os mais sensíveis – aqueles sobre os quais a dor da vida pesa mais forte – são como os loucos: o que nos separa da internação é exatamente a tênue linha de equilíbrio estrangeiro que preservamos.

É por isso que preciso fugir de mim nesses dias. Por isso fiz minhas férias de apenas dois dias: preciso reencontrar o caminho. Estive próximo – e, juro, ainda estou – de perder o controle. E, se for, não há volta.


Viver é perigoso.
Desejo-te sorte.

Simulacro do mundo

15:42 postado por Thiago Terenzi


“O escritor é uma das criaturas mais neuróticas que existem: ele não sabe viver ao vivo, ele vive através de reflexos, espelhos, imagens, palavras. O não-real, o não-palpável.”
Caio F.







É que, ao nascer, faz-se a escolha. E não há o que discutir. Escolhe-se, no gênese inicial, a vida ou a escrita. E o escritor não vive – o escritor é triste. Não há – e repito em minha ignorância sábia de rei absoluto – não há alegria na escrita. Escreve-se quem já morreu. Os vivos apenas vivem. Aos outros, tem-se a escrita como quem grita um grito doído: restam-lhe as palavras.

A ele restava o papel. Restava-lhe o ranger do lápis rasgando o papel e o barulho mofado das teclas sob os dedos. Bastava-lhe o cheiro seco das letras e as palavras recém criadas num respiro inicial. A ele a nobreza estava em sabe-se-lá-o-quê de seus olhos. Eram-lhe, as letras, o simulacro de seu próprio mundo. O escritor escrevia como quem inspira o frio. Escrevia – pasmem! – como quem vivia.

Escuta: não há nobreza na escrita.

E ele, entre os livros e escritos, dava-se a viver a vida em carne e osso. Não aos pulos e mergulhos – mas aos goles rarefeitos. É que, ao escritor, tem-se o perigo: morrer em sua não-vida. É preciso, então, ir-se em doses. É que escrever é perigoso – sabe-se lá onde da alma as palavras vão pousar.

E então ele escrevia – e, ao escrever, morria. Ou ao menos fazia da escrita uma meia vida que lhe permitisse respirar. O escritor tem as palavras para não morrer do mundo – é o que lhe resta da vida – vida? E então ele escrevia pois não podia viver. Não lhe era dado o direito à vida. Repito: não há nobreza na escrita. Apenas a vida é nobre.

A ele – plebeu das letras – restou as palavras. Sabe-se lá se por medo ou coragem – mas a ele, restou as palavras. E as palavras – alertaram Clarices, Herbertos e Guimarães – as palavras são perigosas. Sorte a nossa que ainda temos a vida.

Viver é perigoso. Morrer, ainda mais.

O Deus

15:33 postado por Thiago Terenzi

Não que existisse qualquer força maior, mas ela descansava sua dor nos ombros do que chamava de Deus. Não que também inexistisse tal força – não cabe aqui especular –, mas a ela, crer bastava. A garota agarrava a idéia de Deus como quem agarra a última esperança. E ao crer, ele existia. E ela suplicava ao vento, que, em meio ao medo, batizara de fé. Era o Deus, que surgira do medo.

Sem qualquer indício de remorso ou autocrítica no olhar, ela criara seu Deus do medo. E lhe era legítimo tê-lo ali. Criou-se um Deus-próprio exatamente quando a noite surgira e fizera-se o medo. Talvez – desculpe-me se assim for – seja, eu, duro demais ao condená-la por seu credo tardio. Talvez carregue, eu, migalhas da crença de que se deve crer desde sempre e não somente ao entardecer. Ledo engano o meu se assim for. Talvez o inverso caiba melhor: pode-se Deus tê-la agarrado pelo braço quando o medo surgiu. Talvez soubesse Ele da fragilidade feminina da garota mulher incapaz de suportar, sozinha, o inverno. Talvez fosse Ele tão mais solidário que tu, incapaz de estender a mão à mulher.

Ou talvez fosse a própria mulher que gritava a si mesma um berro de vida. Talvez a força maior que chamaste de Deus fosse a própria mulher tão maior que si mesma, crescida da dor. Talvez a súplica a Deus fosse, na verdade, uma súplica a si mesma, num sussurro de “sobreviva” gritado aos próprios ouvidos.

Talvez, antes de querer o perdão divino, ela precisasse perdoar a si. Antes de amar a Deus, talvez lhe fosse preciso o amor próprio. Pois, em meio a madrugada, já não importava o fim. Bastava-lhe o vir-a-ser.

O Cigarro

16:09 postado por Thiago Terenzi


E ela não tragou o cigarro pela última vez. Trêmula – angustiada entre a vontade do sim e a certeza do não –, apenas fitou-o sobre o cinzeiro até que o cigarro, metamorfo, virasse cinzas. Não tragá-lo foi uma decisão difícil: não pelo prazer do vício, mas pelo significado daquele ato – não senti-lo pela última vez era abandonar o que lhe fora essencial. Era algo grande. Ela nem ao menos sabia – tu não sabes, acredite – mas era grande.

E trêmula – não pela carência do vício, mas pela força do ato –, cerrou os olhos num vazio necessário e fez-se forte. Ela sorriu de um sorriso doído, mas soube, sem ao menos saber como sabia, que para ter era preciso abrir mão. Tu não entendes, acredite – e nem ela espera de ti entendimento. Ela que nem ao menos se compreende. Mas aquilo era como tirar-lhe o mais essencial – o mais difícil e o mais doído: era-lhe o último trago – e ao abrir mão do mais difícil... ah, ao abrir mão ela soube que estava pronta para algo maior. Algo sem fronteiras que nem ao menos conseguia enxergar. Vês?

Ela não sabia, mas ao fitar o cigarro sobre o cinzeiro, tornara-se infinitamente maior que si mesma. Tornara-se pronta. Pronta para abrir mão. Pronta para desapegar-se do não-essencial. E ela, trêmula e frágil com seus olhos inseguros – ela negava, naquele momento, os desejos mais urgentes. Tu não entendes como, mas mesmo com seu corpo encolhido como quem busca proteção – mesmo sozinha procurando afago – ah, ela era indizivelmente maior que todos nós. Para ela, bastava-lhe o pouco que tinha e que lhe era verdadeiro. Bastava-lhe. Entendes? Para ela, grande mulher, não havia mais ‘porém’ ou ‘mas’. Era-lhe de direito o ponto final.

E a fumaça do último cigarro ainda se moldava ao ambiente quando, num súbito espasmo de alma, ela – pequena e frágil e doída –, ela gritou. E gritou-se de um grito preso que enfim ganhava liberdade. Um grito falho de quem há tempos não utilizava-se das pregas vocais. Mas era um grito sincero – tímido e medroso, mas sincero. Porque mesmo insegura e abraçada a si mesma em posição fetal – mesmo querendo-lhe proteção, ela era grande. E então o grito era-lhe seu por direito. E gritou. De olhos fechados. Tu não entendes, mas ela gritou:


E no instante seguinte, arrependida do grito, suplicou:

– Sejamos maiores. Por favor.

E, então, adormeceu.

Sobre o entender-me

12:56 postado por Thiago Terenzi



As palavras não importam – digo sem rodeios literários, ríspida e impulsivamente. As palavras são o que há de menor na alma que é texto escrito. É a epiderme, e eu quero – devias querer-te também – no que há no mais profundo.

É que as letras limitam a alma ao dicionário – como saber qual palavra usar? Ignorante, prefiro munir-me no não-sentido. Salvo-me ao escrever caoticamente, que é a forma de escrita primária. É assim: as letras saem e formam ritmos e cores e risos e choros e sabe-se-lá-o-que-mais. E se misturam, as palavras, em formas estranhas. E faz-se espelho da alma – que é caos por natureza.

E escondo-me no simples que há no hermético das palavras. E basta. É simples. É completo. Basta. Prefiro-me assim: nas entrelinhas da não-linha.

A arte

04:02 postado por Thiago Terenzi






Da janela semi-aberta, as primeiras gotas de sol começaram a surgir anunciando a quem quisesse ver – e apenas ela via – que a noite anterior já era dia seguinte. E era dia bonito, o que nascia. Não havia nuvens, e embora as trevas ainda dominassem meio céu, o azul surgia aos poucos em cores de alívio.

O quarto, porém, era noite em traje completo: luzes acesas num amarelo amargo, cheiro de cigarro, Augusto dos Anjos aberto num poema antigo e mofado, bebida pela metade – e ela: olhos semi-cerrados fitando sabe-se lá o quê – olhos inchados de quem não dormia há tempos, os dela. Misteriosos, claro, como se fossem fieis de um segredo doído – como se soubessem a verdade do mundo. Seu olhar perdido parecia acostumado à luz e às trevas. Era estranho – traz medo, confesso. Parecia entender algo que ninguém mais entendia. Uma verdade oculta. E nem por isso demonstrava qualquer brilho maior.

Sobre o colo, o teclado: a mulher digitava compulsivamente. Digitava como se respirasse as letras, como se a palavra fosse uma maneira de manter-se viva. E era. Enquanto escrevia, tinha certeza que suportava. E suportar já era estar viva. Bastava.

E aquilo que a mulher fazia em seu momento mais necessário – aquilo era chamado de arte. Ela, porém, não se enganava: não há nobreza ou beleza na arte. A arte é inquieta e fria. É de uma luz sangrada e triste. E o artista é um ser incompleto. O artista apenas suporta. Ela suportava.

E escrevia como quem transborda. E enquanto escrevia, apenas no instante em que tocava a tecla com o dedo – apenas nesse instante, era feliz. E no instante da escrita, ela não sentia o aperto queimando-lhe o peito. E respirava-se de um ar que lhe era legítimo. E fechava os olhos e sentia-se viva de uma vida que era aos poucos – mas que, mesmo assim, era-lhe a vida.

Nos outros instantes – nos que deixava de lado a escrita para fumar, por exemplo – nos outros instantes, ela entregava-se ao mundo. E cedia por compreender que qualquer resistência seria dor inexorável. E então deixava a dor doer num olhar conformado. E resistia serena fingindo estar viva.

Naquele instante, porém, em que o sol nascia – naquele instante ela abandonou a escrita. E antes que a dor pudesse voltar a matá-la, sussurrou ao vento juntando-se de todo o amor que lhe restava:

- Quero ser-me um dia – e numa voz medrosa, como a de uma criança implorando abraço, finalizou – vamos ser-me juntos?

O Certo

20:46 postado por Thiago Terenzi


E o quarto estava escuro pela luz envelhecida que adentrava o ambiente. Era luz pouca a que vinha da rua – amarela e enjoada. Mas havia a luz. E em meio à semi-escuridão, eles se entreolharam e se reconheceram – os olhares, ao contrário do corpo, que é passageiro, os olhares eram eternos.

- Não o vejo há tempos – constatou a mulher num sussurro cordial.

- O trabalho e o estudo me consomem muito – respondeu o homem como que desculpando-se ao vento – mas venho aqui sempre que posso. Juro.

- Queria que pudesse mais – e mentiu: – mas entendo suas razões.

- Todos temos nossas razões – e fitando-a, pôs-se filósofo: – faz parte do amor entendermo-nos.

Ela, que não era dada à razão, escolheu-se pelo silêncio.

- Senti saudades – confessou ele quebrando o silêncio de frações de segundo.

- Eu continuo sentindo-a.

Eles, anestesiados, fitaram-se e souberam que havia o amor. Para não estragá-lo, porém, despediram-se.

E a mulher olhou o nada com uma certeza perigosa, embora perdida e vazia. É que ela achou que bastava o beijo e estaria salva. Não pensou que, não raro, precisaria renunciar o ser-a-si-próprio para ser feliz. Não sabia que seria preciso dosar o mais necessário de si para não perdê-lo, o homem, em seu próprio individualismo.

E, muda, fechou os olhos e percebeu que até o mais sincero de si deveria sujeitar-se à máscara. As palavras deveriam ser medidas e o abraço, embora sincero, não deveria esmagar o instante. Justo ela, que nunca se dera à política ou ao teatro, teria que dosar. Ela que bebia a vida em goladas, teria que ir aos pingos. Era necessário entender razões. Quais? não sabia, mas teria que entender. Era o certo.

Abrir-se por inteira seria impor-se. E ela não queria a imposição - por Deus que não. Preferia a mascara à imposição. Preferia a dor. Mas, antes de tudo, preferia a sinceridade.

Incomodava-a ser-se aos poucos. Mas era o certo.

Pequeno

12:29 postado por Thiago Terenzi


É que respirar era custoso. Inspirou aos poucos, medroso – com cuidado para não tragar de uma só vez todo o ar que é vida. Engoliu a saliva numa demora calculada – qualquer movimento brusco e tudo estaria perdido. Bebeu mais um gole da bebida e fumou um cigarro que nem sabia fumar. Tossiu. As mãos trêmulas seguravam-lhe o peito pelo medo deste se romper.

E apenas suportava. Imóvel, engolia a noite gélida para equacionar a dor. Era uma maneira de digerir o insuportável mesmo estando vivo. Usava o que lhe era de direito para mastigar tudo – absorver o que era maior e mais cruel do que poderia suportar. Poderia, ele, gritar de um grito que lhe fosse legítimo – e seria – ou beber o mundo, mesmo este sendo sólido. Mas não. Esvaía-se em silêncio. Morria-se só. Suportando, não sem dor, o insuportável.

E quando tudo lhe parecia escapar por entre as mãos, e a dor e a angústia e o sabe-se-lá-o-quê dominavam o corpo – daí ele dormia. Não era um sono leve. Mas era suportável. Suportável pela beira – quase grito de morte. Mas, ao menos, mantinha-se vivo. Mantinha-se, na verdade, entre o vivo e o não-vivo, entre o que há de pior e a falta de ser. Era-lhe a sua cruz. Era-lhe o preço pago por dizer a salvação é pelo risco. Arriscou-se ao mundo e sabia – por saber de outras lágrimas – que o mundo não é em cores de Almodóvar. O mundo nem ao menos é.

E seria-lhe mais fácil e até mais nobre – ao inferno a nobreza! – berrar um não! à vida. Seria-lhe legítimo dizer não quero mais. Entenderiam. Entenderias tu. Doeria-lhe a alma, mas de uma dor menos intensa. Traria feridas, mas não levaria ao coma. Tiraria-lhe o brilho do olhar – mas não faria de seus olhos, olhos cegos.

Mas não: escolheu-se pelo caminho mais difícil. Escolheu-se por engolir tudo em silêncio, mesmo sendo o tudo muito mais do que ele, pequeno – meu pequeno? –, poderia suportar.

Então dê-lhe as mãos e abraça, por favor, que o pior está por vir. É que a dor do insuportável – que faz do ar veneno e cura – é demais. Queima-lhe a alma. Tira-lhe o brilho dos olhos. E ele só queria dizer-te o que disse tantas vezes. Não conseguiu. A dor tirava-lhe a verdade da face– mesmo sendo tudo a mais pura verdade. E ele não diria nada que não fosse sincero de uma sinceridade cortante. Não estava disposto a jogar baixo. A verdade em seus olhos, embora maquiada pela dor, era o pedaço do que lhe restara. Não estava disposto a perdê-la.

E o que doía-lhe mais e fazia de tudo insuportável era não poder dizer tudo novamente. Poderia, claro, mas não seria de alma – e a sua estava fatiada em pedaços mil. Diz-me tu: alma regenera? (diga sim, por favor, que o frio é muito mais do que o corpo agüenta. Mas seja sincero, que em ambas as respostas, a dor já vem).

A dor já vem.

Finge tu

04:38 postado por Thiago Terenzi


E finge que está tudo bem. Vês? é melhor assim. Finge que eles se viram e se amaram. Finge que a lágrima era alegria de instante-aspergido. Finge tu. É que o importante não é o estar-se – é o ser. Finge ser feliz – pois és. A tristeza de agora é coisa pouca. Finge ser sincero este sussuro – que ela, a felicidade, logo volta. Verás.

Finge. Apesar de.

Oração à felicidade

03:07 postado por Thiago Terenzi


E ele, por fim, fez de conta ser feliz e, então, foi. Ouviu os pingos de chuva baterem metálicos sobre a superfície que o cobria e sorriu de alegria sincera. Olhou-se em seu próprio olhar negro e viu-se sereno – de uma serenidade sem motivo, de ares perdidos numa quinta-feira errante pela madrugada.

Perdido em meio à noite – que é fria e ingrata –, parecia não temê-la. Ao contrário: fitava-a altivo, como quem experimenta o líquido salgado que é estar-se completo. E estava: não por ter tudo – mas por seu oposto. Sentia-se, o garoto, parte do mundo – e não dono dele. E isso lhe dava uma tranqüilidade serena que umedece os olhos.

E, deitado sobre o colo da própria noite – personificada em carne e osso –, abriu a alma e sorriu. Sentiu-se forte de uma força que lhe era legítima e arriscou-se a sonhar. “A salvação é pelo risco”, ouviu um dia em leituras passadas – e então arriscou-se em ser feliz. E foi. E sentiu o cheiro do colo, que era macio e adocicado e adormeceu.

E então, já adormecido, desejou congelar o instante e chamá-lo de seu – era apenas o que desejava possuir. Abriu os olhos, capturou a áurea do que era ser feliz e guardou-a firme em suas mãos. Firme o bastante para jamais deixá-la escapar. E não deixaria. Ainda embriagado pelo perfume escuro e quente da madrugada, sorriu de seu sorriso mais sincero. Era um sorriso interior, que não se refletia em sua face – ela continuava serena. Era um sorriso que, muito mais que os músculos faciais, contraía a alma.

E era ele de uma felicidade tão sincera e simples, que chegava-lhe a doer o peito. Doía-lhe pelo excesso: a perfeição de estar-se sereno não lhe cabia no corpo humano. Ele, então, gritou-se em um sussurro de libertação e sentiu-se curado. Ninguém pôde ouvi-lo. Mas o grito estava lá. E ele, por instantes, também não pôde ser visto – não em meio ao escuro da madrugada – mas sabia, sem saber como sabia, que também estava ali. E que aquilo, enfim, era a felicidade.

Amém.

22:58 postado por Thiago Terenzi



- Amo-te. – confessou como quem diz obrigado.

E ela acreditou. Abriu-lhe a alma e disse-lhe em silêncio, tira-me do lugar-comum. E beijou-lhe rijo e quente e agarrou-lhe os braços pelo medo de o instante dissolver. E sussurrou-lhe palavras indecifráveis e fixou-lhe os olhos e sorriu de um sorriso sincero.

E sincera e despida e iluminada, ela fez-se livre e dormiu em seus braços. Ele, homem; ela, mulher. E disse-lhe com o olhar, tira-me do lugar-comum. E deixou-se ser e foi-se mulher muito mais que fêmea – pois fora feliz simples por ser. E disse a si mesma, tira-me do lugar-comum. E acreditou-se por um único instante e gritou-lhe em sussurros, eu cuspo alma. E cuspiu-lhe um beijo de olhos que se tocam.

Ele olhou-a e amou-a como quem o faz obrigado.
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