Um colo

23:47 postado por Thiago Terenzi

“So how do I feel this good sober?”


Luzes, aplausos e toda aquela baboseira de orgulho-da-família e garota-problema-que-deu-certo-na-vida. Plateia fotos autógrafos sorrisos e programas de tevê. Tudo que todo mundo sempre quis e no entanto nada. No fim é só essa dor no peito e esse gosto de vômito na boca que nunca passa. Nunca passa, cara. No fim é esse movimento de luzes cidades e abraços sem motivo e sem sentido que nem ao menos aliviam mais a dor.

Ah, como eu queria sua vidinha sóbria, cara. Queria um porto, um lugar para deitar a dor. Um único lugar: nada de mil corpos sem identidade em quartos de hotel. Queria minha cama e meus caquinhos: meia dúzia de roupas, discos e um emprego de merda desses que nos fazem chegar em casa cansados e dormir com um beijo de boa noite. Lembra quando a gente tinha isso? Ah, a gente sempre teve tanta coisa, boy. É que o que a gente quer mesmo é esse sonho careta que no fundo todo mundo tem: rodar na roda e alugar um apartamento fodido e barato no trigésimo andar de algum prédio velho no centro e morar juntos.

Ah, eu só queria morar nesse prédio fodido, cara. Logo agora que consegui o que sempre quis – só quero o prédio. Logo agora: programa de tevê me dizendo ser grande-nome-da-música-contemporânea, dinheiro, bebida e toda essa merda que chamam de chegar-lá. Cheguei. E quero ir embora. Odeio o palco e odeio que cantem minhas dores. Ah, cara, acho mesmo é que odeio a música e tudo isso que chamam de arte. Odeio luzes aplausos e autógrafos. Odeio a loucura e os que vivem na noite.

Somos todos fodidos, repito sempre entre o pó do camarim e as luzes do show. E choro e choro e choro e me vem uma vontade estranha de fugir do palco e ir te ver. Como antes. Como sempre. E deitar no seu colo como uma menina medrosa e chorar e chorar enquanto você sussurra calma, bebê, eu tô aqui, e eu me acalmo e durmo com os olhos meio abertos como sempre dormi, e você rindo meio alto para que quem sabe eu acorde e então te sorria aquele meu sorriso charmoso de preguiça contida. Ah, boy, mas nem tenho coragem. Sou medrosa e desesperançada. Sempre com esse ar meio infeliz. Vou é subir no palco e tristíssima gritar minhas dores e ganhar aplausos encorpados – e ganhar aplausos pela própria dor.

O que queria era dizer – antes que esse show comece e eu seja empurrada ao palco e aos flashes e ao uísque e aos sorrisos forçados e aos abraços de parabéns-você-é-um-talento – ah, o que eu queria era dizer que guardei uma grana e dá para alugar um apartamento apertado no Maletta sem luxo ou coisa do tipo, mas a gente pinta, eu sei pintar e tenho um emprego em vista, enquanto isso vivo da música, componho bem, dá um trocado, tenho contatos. E você diria – e diria apenas no meu sonho, mas juro que diria, boy – diria temos que fazer economias, amor, precisamos de algum dinheiro guardado, não podemos fazer loucuras sem pensar. Morar juntos é coisa séria. Mas sou pé-no-chão, cara, sei que no fundo riria da minha cara. Morar com alguma ex-cantora fodida não faz seu tipo. Ainda mais eu e meus erros infinitos que nunca admito. Ainda mais eu que ando errando tanto e tanto e tanto.

E então eu canto porque no fundo é o que resta. Canto aos berros como que buscando alguma salvação, algum porto que me seja de direito. E quando as luzes se apagam choro e choro e choro e choro porque transformaram-me em mulher-da-noite-louca-e-multitalentosa. Logo eu que sou menina frágil e ridiculamente convencional. Logo eu que queria apenas um sorriso e um sussurro cantarolando Cazuza meio desafinado dizendo pelos cantos da boca num sorriso infantil: é que eu preciso dizer que te amo tanto.

Um telefonema

18:00 postado por Thiago Terenzi

Nervosa sob o espelho, reflexo de seu próprio reflexo, olhos fitando a si próprios – nervosa ela seguia, mansa, doída. Mas seguia. E dizia em voz trêmula a si mesma (quem sabe ao próprio reflexo) dizia, sim, vou ligar. E decidida e frágil e errante e cheia de dúvidas – como de fato são os heróis de carne e osso, se é que existam heróis – ela quis ligar. Não que antes não quisesse, mas –. Difícil dizer. Difícil dizer sobre o antes quando nem ao menos tem-se o depois. É que desde aquele dia em que algo sem nome morrera: não havia antes ou depois. Havia o desde então.

E desde então ela disse num sussurro à sua própria imagem refletida, disse sim, vou ligar. E bebeu mais um gole da bebida e pensou que diria olá, gostaria de te convidar para uma festa aqui em casa, mas pensou que seria formal demais e não havia motivos para mais barreiras que os muros infinitos que já os separavam. Depois pensou em dizer oi, vem aqui amanhã, festinha só para os íntimos, porque haviam sido íntimos e intimidade, quando da alma, é eterna. Mas depois lembrou que nem haveria festa e nem havia intimidade ou amigos. Não havia restado muito além da dor e alguma bebida quente no armário entre a geladeira e a janela fechada. Sempre fechada.

Então diria oi, como vai? liguei pra saber as novidades, vai mesmo viajar? Irlanda? Europa dizem que é linda. Diria como se não houvesse qualquer abismo, na esperança de que eles tivessem de fato desaparecido – mas havia abismos. Que fazer de um silêncio sólido? Que fazer quando – porque iria – receber ao telefone o silêncio da falta de sentido?

Não havia espaço para faltas de sentido. Não havia espaço para fraquezas ou telefonemas bêbados e inesperados às três e quinze da madrugada como se nada tivesse acontecido. Não havia espaço para recuperar o irrecuperável. Eis a tragédia da vida, pensou ela entre um gole amargo da bebida e um sorriso irônico e descrente.

Ela, naquele ponto da madrugada e da embriaguez (talvez mais embriaguez que madrugada, porque nem parecia ser assim tão tarde) – ela nem sequer lembrava do que havia acontecido. Alguma briga, algum resquício de orgulho idiota, alguma imaturidade infantil; ou talvez algo grave, uma palavra irremediável – ah, como tinha talento para dizer o irrecuperável –, uma descrença sem motivo ou sabe-se lá o que mais. Não importava motivos. Nunca importaram.

Importa dizer que ela ligou – ah, ela ligaria hora ou outra da madrugada. Chamou uma, duas vezes. Desligou – ah, ela hesitaria, jamais esteve preparada para o silêncio. É que tinha bebido e a bebida poderia lhe atropelar as palavras. Depois de tanto abismo a bebida lhe falharia a voz, se enrolaria num cumprimento embolado – nunca havia sido forte para o álcool. Nunca havia sido forte. Desligou o telefone.
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