A ausência de

18:59 postado por Thiago Terenzi


E o dia nascera. Mesmo havendo a dor – e ela estava ali –, o sol surgia forte e quente e queimando a perna de varizes mofadas daquele homem. Era um homem velho murcho doído. Dormindo às três da tarde de uma terça-feira e o sol quente, sempre quente. Era um velho sem rumo. A barba mal feita, pêlos brancos aqui e ali, aquele cabelo seboso entre o liso e o anelado, aquele rosto amarrotado de quem dormiu a vida. De quem comeu a vida e não engoliu.

E o homem, perigosamente pálido, levantara da cama. O sol quente, sempre quente, queimava o quarto sempre àquele horário. Ele até queria comprar cortinas e espalhar pela casa e dizer adeus de vez ao sol, mas é que nunca saía do apartamento, quando saía não lembrava de comprar coisa alguma. Lembrou é de ascender o cigarro, Marlboro vermelho em jejum, puxou o ar com voracidade, engoliu a fumaça, gosto de nicotina na garganta, depois assoprou e viu aquele ar cinza impregnar o carpete já meio amarelado queimado nos cantos. Veio à boca aquele gosto seco de ressaca, aquela sensação de boca encardida. Fumou outro cigarro e ouviu Janis no vinil.

Depois preparou a bebida: duas pedras de gelo e uísque até a borda. O gelo era mais pelo barulho – o tin-tin-tin da pedra no copo tinha lá seu glamour. Então fechou os olhos e imitou a cantora fazendo em falsete a voz rouca gritando “come on and cry, cry baby, cry baby, cry baby”. Abaixou o volume para ver se o telefone tocava, pensou que um amigo poderia ligar, perguntar como estava e chamar pra encher a cara no fim de semana que teria festa na casa de não-sei-quem e que era só levar dez latas de cerveja que a vodca seria de graça – mas o telefone nunca tocava. Nunca. Então ascendeu outro cigarro, o maço estava acabando, restava uns dois ou três. E então ascendeu e fumou compulsivamente, naquele mesmo ritual voraz de engolir a fumaça. O gosto de ressaca ainda secava sua boca.

Em meio ao tédio, pensou que poderia ligar para uma amiga e falar “gata, vamos beber hoje? É que eu tô com saudades e preciso de amigos”. E então ele seria sincero e diria que nem gostava tanto assim dela, mas é que não restara muitos outros. “É que é todo mundo feliz e eu aqui com essa dor no peito, essa coisa atravessada na garganta. Daí lembrei de você que sempre foi meio doída e resolvi ligar”. E então ela toparia e bateria àquela porta às oito e levaria uma garrafa de vodca meia-boca para misturar na coca. Eles chorariam juntos e depois trepariam uma única vez porque no fundo nem havia tanto tesão assim. Depois dormiriam nus, cada um no seu canto, até dar três horas da tarde e o sol, maldito sol, expulsá-los do sono.

Mas então o homem lembrou que nem tinha mais o telefone dela, que perdera o celular numa noite qualquer, provavelmente bêbado. Lembrou que não tinha o telefone de ninguém. Franziu a testa tentando buscar na memória números ou e-mails mas foi em vão. Decidiu comer alguma coisa, estava com fome. Cheeseburguer de microondas, tudo artificial. Ligou o aparelho, colocou o hambúrguer, um minuto e vinte. Encheu um copo com coca porque odiava comer com álcool. E comeu.

Depois ainda bebeu o resto do uísque, fumou os últimos dois ou três cigarros e ouviu Janis depois Caetano depois Cazuza depois dormiu.

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