A Velha

19:01 postado por Thiago Terenzi

Era uma mulher de face rugosa e clara. Era alta, branquíssima e de olhos negros. Mas, sobretudo, uma mulher de rugas. Era uma mulher velha e branca que morava no terceiro andar de um prédio velho e branco. Eram-se – a velha e o prédio – irmãos de alma: padeciam da mesma dor. A velha, que resistia ao inevitável destino humano, abraçava o prédio, que, por sua vez, suportava calado seu destino: o de ser prédio velho numa cidade de edifícios velozes.

Apesar da dor, ela vivia – era preciso viver porque viver era o certo. E, então, justamente por fazer o certo, ela fazia compras no supermercado. Comprava, a velha, dois quilos de arroz simplesmente porque gostava de arroz e almoçava apenas arroz. Quando jovem, não lhe permitiam comer o que queria. “Almoço bom tem que ter muitas cores”, diziam-lhe. Agora, velha e só, comia arroz por revolta particular.

E, satisfeita consigo mesma, a velha entrou no prédio segurando o fruto de sua liberdade – um saco de dois quilos de arroz. Segurava-o firme por entre os dedos e a palma da mão. Segurava-o assim pois já era velha e não podia dar-se ao luxo de deixar o arroz cair. Seria a prova de sua incapacidade de mulher antiga – e ela queria resistir como o prédio que, embora velho, jamais cedera-se a uma infiltração sequer. Ela queria ser o prédio.

Próximo à portaria, em frente à escada e aos três lances de degraus que a esperavam, a velha descansou por apenas um instante. Era necessário ser forte para, em plena velhice, morar no terceiro andar de um prédio antigo.

Foi então que um rapaz loiro e jovem oferece-lhe ajuda enquanto descia as escadas. Era jovem, forte e bonito. Era desses que encarava os degraus sem temor. Olhar curioso e rebelde, eriçado. Disse-lhe “deixa que levo as compras para a senhora”. A velha recusou prontamente. Levar-lhe o almoço era levar-lhe a vida. Era-lhe tirar o último desafio que restara. Levar o arroz até a cozinha era sua – e apenas sua – tarefa. Se aceitasse a cortesia do rapaz, seria mulher sem missão. Seria, então, uma velha sem vida, apática, cujo destino fora-lhe roubado.

E, com a recusa, o rapaz foi embora e a mulher, solitária, permaneceu inquieta sobre a escada. Foi quando a sacola pesou sobre os seus dedos e, não sem antes resistir com bravura, a velha falhou. Seus dedos frágeis não resistiram e cederam. Um estrondo seco denunciou que os dois quilos de arroz ganhavam agora o chão. Justo ela que lutara bravamente para preservar os restos de sua dignidade – justo ela falhara. Ela que entendia – e justamente por este motivo – amava a dor do prédio em que morava – essa mesma mulher agora definhava sobre a escadaria chorando um choro de missão falha. Ela que só queria viver porque assim lhe parecia ser o certo, ela agora descobria-se demasiadamente fraca para a vida.

E sentiu-se velha pela primeira vez. Sentiu-se inapta para a vida – e o principal: inapta para o amor: quem amaria uma velha cujas rugas tomavam a face inteira? A velha, de repente, não mais sentiu-se mulher. O que a fazia feminina? ser mulher era amor-próprio. O feminino é antítese em seu próprio desafio. Mas ela... ela nem ao menos conseguia ser. Ela havia falhado em seu mais orgânico desafio. E agora sentia-se incapaz de despertar desejo. Nem sequer sabia desejar.

Foi quando percebeu que viver era também abrir mão. Soube-se, então, sem saber como sabia, que a dor era vida e que as missões não eram necessariamente feitas para a vitória. Soube que a derrota lhe fazia humana e que ser mulher era mais que desejo – ser mulher era também falhar e chorar sobre a escada fria.

Percebeu, então, que a vitória não era o único caminho. E o dela era o outro. Ela que sofrera tanto porque diziam-lhe que devia ser feliz – justo ela que tentou porque lhe parecia o certo tentar, justo ela descobriu, aos setenta e oito anos, que falhar também é caminho.

E triste – mas de uma tristeza consciente que lhe era de direito – a velha subiu as escadas lentamente, já sem o arroz, entrou em seu apartamento e observou da janela da sala as pessoas vivendo lá fora.

Parecia tudo tão normal...

2 pessoas disseram. E você?:

  1. Anônimo disse...

    O que mais quero é te dar um beijo
    E o seu corpo acariciar
    Você bem sabe que eu te desejo, está escrito no meu olhar
    O teu sorriso é um paraíso onde contigo eu queria estar
    Ai quem me dera se eu fosse o céu você seria o meu luar

    Eu te quero só pra mim
    Como as ondas são do mar
    Não dá pra viver assim
    Querer sem poder te tocar

  2. Dóris disse...

    Estava tudo tão normal... Viver parece ser o certo pra todo mundo... E tudo continua tão normal... Porque todo mundo MERECE ser feliz... E tudo normal... Sem tempo pra parar o tempo e sangrar... Tudo tão normal... Deixa o saco de arroz e segue em frente... O normal é viver, o normal é não viver.

    *deprimida*

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