Aquilo

12:57 postado por Thiago Terenzi

A gente sabe, gato, a gente sabe quando começa Aquilo. Alguma bebida no copo, talvez cerveja nem me lembro, estava calor – é devia ser cerveja. Alguma bebida, algum filme cult europeu, algum carinho e alguma solidão. Alguma vontade tímida e um monte de medos e inseguranças também. Tudo muito bem maquiado naquele meu jeito de garota-sem-recalques-nem-problemas, sabe? e o seu olhar de homem-plenamente-feliz já meio embargado pelo álcool.

E eu bebendo aquele copo de nem-me-lembro-o-quê que provavelmente era cerveja – a gente sempre acaba nela – e segurando o copo porque precisava segurar, sou inquieta você sabe, se não tenho nada nas mãos enlouqueço. E disfarçando a inquietude e bebendo já meio zonza e você rindo se fazendo de homem-forte-pra-bebida sem nem saber que já estava tonto. Ah, gato, a gente sabe quando começa Aquilo.

De repente aquela vontade de te ler alguma coisa, eu querendo recitar livros, Bandeira Clarice Caio Fernando Hilda Hilst – ah, Hildinha cairia bem, te diria ah, a vida é líquida, e você riria sem entender muita coisa. Mas nem disse nada, não digo muito. Devo ter bebido outro gole e você assustado me achando excessivamente alcoólatra e eu assustada sem querer parecer excessivamente bêbada embora estivesse de fato bêbada – e me fosse de fato aos excessos. E você me olhando com seus olhos de homem-plenamente-feliz embora não fosse nem feliz nem pleno, mas nem importava.

E então a gente soube entre um álcool e outro – filme na tevê, provavelmente cinema espanhol ou italiano, luzes apagadas e barulho dos carros lá fora – e então a gente soube. A gente sempre sabe quando começa. Porque naquele instante éramos nós dois sem máscaras ou teatro, nada de garota-sem-recalques ou homenzinho-forte-e-feliz, éramos sós e nus. Cheio de medos e pés atrás você disse este sou eu, e eu sussurrei alguma coisa bonita, talvez uma música, não me lembro. Talvez nem tenha dito nada, vai saber. A memória sempre nos rouba o mais importante.

De repente eu queria dizer – ah, eu e minha mania chata de sempre querer dizer. E dizia e dizia sempre em silêncio sempre sem mexer os lábios e você entendia e dizia também sem palavras fecha os olhos que assim a gente congela o instante. E a gente meio bêbado fechava os olhos e o mundo rodava e rodava mas nem tínhamos medo e eu semicerrava forte a visão para fazer do instante eternidade. Ah gato, já sou velha demais para acreditar em eternidades de modo que sabia que aquele único segundo era a minha salvação. Era aquela partícula de tempo e só. Depois viriam ódios ciúmes discussões e um monte de coisas boas mas que jamais seriam Aquilo. E depois viria as tentativas desesperadas de salvar o que já estaria morto, aquela coisa desgastante de remediar o irremediável e fazer política do amor... Mas naquele instante, naquele único instante estávamos salvos. Completamente salvos porque nós mesmos nos salvávamos.

Ah, gato, a gente sempre sabe quando começa Aquilo.
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