Conto de Fadas

14:12 postado por Thiago Terenzi


Era uma vez um menino sozinho. Cabelo ao vento, sorriso no rosto, olhares perdidos em meio ao novo, mas – e acima de tudo – um menino: sozinho. Justo num mundo onde era tão perigoso estar só – ele estava. Todos sabiam dos perigos da solidão. To-dos. Tu mesmo: onde apoiastes o corpo no último inverno? ele, o menino, dormira em meio ao frio e à escuridão – logo ele que tinha tanto medo de escuro...

Eu também tenho medo do escuro – mas como já não sou menino, disfarço. Ele não: com uma coragem indizivelmente superior à minha, o menino permitia-se ao medo. É que era necessária uma bravura heróica para permitir-se a certas coisas. E ele – ah, ele não sabia disso – mas era herói. Não que lhe fosse grandioso ser herói. Não era. Não há grandiosidade na solidão. Mas é que ao permitir-se ao medo, o garoto fazia algo raro: estava sendo ele mesmo. Sem máscaras, sem esconder as próprias fraquezas: simplesmente vivia.

Decerto que ele pouco importaria se, para findar-lhe a solidão, fosse necessário também abdicar da liberdade. Mas é que a solidão lhe era característica inata – o que fazer? o que esperar de um menino sozinho? Certas vezes ele dependurava-se na janela da sala – que tinha vista para a rua – e esperava as crianças vizinhas chamarem-no para fazer-qualquer-coisa. Nunca chamavam.

E ele sabia que o mundo era por demais perigoso: não se podia estar só. O que fazer quando, anos mais tarde, a dor lhe doesse? suportaria sozinho a vida? justo a vida que era tão vasta, como enfrentá-la só? Era preciso ter para quem ligar quarta-feira às quatro da manhã – e mais: era preciso ter com quem beber garrafas de vodca e vomitar a dor. Era necessário ter com quem discutir inutilmente Nietzsche ou Lacan numa mesa de bar ou sorrir enquanto constata-se a fragilidade da vida do outro – era imprescindível ter com quem dividir o cigarro ou a dor. E ele não teria nada disso...

Não que já soubesse, garoto que era, dos perigos da vida futura – mas é que alguma coisa-sem-nome-nem-rosto lhe dizia em sussurros: é necessário ter alguém que... (e então vinha o silêncio). E apenas anos mais tarde é que descobriria que era preciso que o telefone tocasse sexta-feira à noite para livrar-se da madrugada fria.

Mas desde muito jovem o garoto sabia que o telefone jamais tocaria. Ele era assim: um menino sozinho. E então inventava fadas e dragões num mundo que lhe era particular – e lhe era também verdadeiro. O menino nunca se apegara à realidade concreta das coisas, de modo que lhe era fácil criar um mundo de fadas e chamá-lo de real.

E então quando o frio doía bastante e o escuro parecia ser inviolável – ah, daí ele sentia todo o calor das fadas lhe proteger. E elas eram tão iluminadas que mesmo naquele escuro completo não havia o que temer. É que as fadas – e também os dragões e os duendes – eles entendem o medo. E ao menino bastava o entendimento. As criaturas fantásticas sabiam que para a dor cessar bastava o abraço quente e o olhar dizendo dorme-que-passa. E então o garoto dormia. Não era necessária uma única palavra: bastava-lhe o abraço.

As fadas e os duendes e os dragões são criaturas incríveis: eles simplesmente entendem. E mudos – porque não há sequer uma palavra a se dizer –, abraçam. É que no fim o garoto buscava apenas o entendimento e não a palavra. Ele buscava o abraço. No fim as palavras haviam sido todas em vão – porque as palavras são falhas e são de fato todas em vão. Ele queria o não-verbal, o espaço vazio entre as letras.

Mas então o menino cresceu e deixou de acreditar nos contos de fadas.

8 pessoas disseram. E você?:

  1. Anônimo disse...

    Escrevi uns texto há uns meses atrás dizendo sobre Infância, quando eu era pequena queria escrever uma palavra bonita para cada letra do alfabeto.

    Cresci e embora hoje conheça muitas palavras, as coisas bonitas me faltam.

    Crescer é isso, falta de coisas bonitas e desacreditar em contos de fadas.

    Texto ótimo.

  2. Rafael Sandim disse...

    Bom seria se pudéssemos viver o conto de fadas para sempre. Crescer nos obrigar a amadurecer. O ideal seria não perder a inocência.

  3. Anônimo disse...

    Realmente, são coisas da alma. Talvez contos de fada não existam. Mas em compensação amigos sim...

    Adorei seus textos. Já vejo um novo Caio F.

    Abraços...

  4. Ana Paula Souza disse...

    Achei muito bom o seu blog. Os textos são bem escritos, bem articulados, uma graça.
    Passa no meu. São gêneros bem diferentes, mas seria uma grande honra para mim se você desse a sua opinião, seja ela boa ou ruim. Virei sua fã!

  5. Thiago Cavalcante disse...
    Este comentário foi removido pelo autor.
  6. Thiago Cavalcante disse...

    Oi, Thiago.

    Hoje, 10 de dezembro, se estivesse em corpo, Clarice estaria completando 89 anos.

    Inicio meu comentário falando sobre a criadora de Macabéa porque aqui - no seu blog – sinto liberdade para tecer frases[ simples] sobre a dama de Água Viva.

    Acredito – indubitavelmente – que a escrita de Clarice vai e está além de interpretações: Não há - dá para decifrá-la.

    Ela ‘sem esconder as próprias fraquezas’ escondeu-se.

    E cá estamos nós... seguindo em letras os passos - no meu caso engatinhando ao contrário – dessa grande mulher, mãe, jornalista, pessoa. Estamos escrevendo e às vezes nos deparamos com seus escritos e damo-nos as mãos a nós mesmos numa tentativa de romper com a dor. Dor que sabemos que existe ,mas que a negamos acolhendo-a (a dor lhe doesse).

    Deixo Clarice ao lado, num lugar bem confortável esquerdo (por que o coração não fica no lugar direito?), e teço comentários sobre ‘Contos de Fadas’.

    E o que escrevo sobre seu escrito, Terenzi, é o que já discorri acima:

    . Sem esconder as próprias fraquezas;
    . a dor lhe doesse.

    Essas duas frases, aparentemente soltas mas interligadas em sua escrita e em reflexões minhas, possuem significados amplos – não interpretativos, íntimos.

    E isso é o bom das letras: Conhecer sem tomar ciência ao certo. Tomar ciência mas não conhecer de fato.

    Volto à Clarice: ‘foi-se com ela o que ficou dela’.


    Shalom.

  7. Unknown disse...

    Bom seria se o tempo parasse.Se tudo continuasse ñ teríamos tempo pra fazer do sonho uma triste realidade. Mas fazer o que? as realidades existem e os sonhos acabam

  8. Dóris disse...
    Este comentário foi removido pelo autor.
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