London, London

20:09 postado por Thiago Terenzi

Dizem que por volta de mil seiscentos e sabe-se-lá-quanto, numa Londres devastada pela Peste Negra, as pessoas assustadas fugiam de suas casas e firmavam acampamento no Hyde Park. Era como se ali – dizem, sempre dizem –, em meio às árvores, lagos e todo aquele bucolismo estranho a uma metrópole, era como se ali fosse uma espécie de porto-seguro, seguro até mesmo da peste, da morte, do medo. Não sei se é verdade, não sei de muitas coisas. Mas sempre que vou a Londres, como agora, como hoje, sempre pela manhã, sempre de manhazinha, sempre caminhando pela Bayswater Street, leve frio londrino, brisa suave, cappuccino quente entre os dedos, aproveito para sentar em algum banco livre próximo a alguma árvore sem folhas, sempre sem folhas, no Hyde Park.

Sempre próximo ao lago, sempre sozinho. Sempre fecho os olhos e me imagino protegido, protegido da peste, da morte, do medo. Nunca fui de acreditar em impossíveis, nunca acreditei em fadas, duendes, deuses e isso-que-eles-chamam-de-plenitude – mas é que talvez por ser Londres ou talvez pelo clima mágico ou quem sabe por eu estar ficando meio velho e precisando de algumas crenças, mas é que enquanto fecho os olhos, leve frio arrepiando os pelos, leve brisa bagunçando meus cabelos cada vez mais ralos cada dia um pouco mais ralos, é que quando fecho os olhos me sinto realmente protegido. De uma proteção tão frágil quanto a que sentiam séculos antes aqueles pobres londrinos fugidos da peste. Como se aquela leve magia do parque pudesse salvá-los. Como se aquele frágil instante de plenitude-distraída pudesse me salvar.

Dia desses andando sem destino pelo parque, como sempre tenho andado desde nem-me-lembro-quando, dia desses perdido como me é de costume, ando me perdendo tanto e tanto que nem sei ao certo o que fazer de mim – dia desses pelo parque, numa das margens do Serpentine Lake, encontrei uma imagem esculpida em pedra, linda, imponente, cinza, grande, muito grande: um pássaro de asas fechadas, um pássaro lindíssimo, não me lembro a espécie, não sei de muitas coisas mas sabia que era lindo e lindo de um encanto mágico. Nunca me encantei por animais, mas aquela figura altiva, um pássaro enorme de asas corpulentas protegendo todo o corpo, olhar penetrante e bico largo num estranho sinal de reverência, reverência a mim, justo a mim, eu que sou tão menor que qualquer pássaro, tão frágil, tão pequeno, tão ridiculamente frágil e pequeno – imóvel, sempre imóvel, estudei a escultura enquanto ela, também imóvel, parecia me fitar.

Após segundos de completo choque e êxtase contido, reparei ainda distraído, como ando desde nem-me-lembro-quando, ando tão distraído tão sem-motivo para qualquer atenção, reparei numa placa de ferro abaixo dos pés imponentes daquele pássaro. Havia algo escrito. Meu inglês péssimo sempre péssimo, nunca soube de muitas coisas, nunca soube de muitas palavras além do mínimo necessário para sobreviver em Londres, meu inglês jamais me deixou traduzir com exatidão o que havia ali – talvez o escrito contasse a estória daquela ave estranhamente corpulenta, talvez revelasse a identidade do escultor, algum famoso artista plástico londrino, vai saber, as palavras eram difíceis, vocabulário complicado e há tempos eu já não me dedicava mais aos estudos, há tempos eu já não me dedicava mais a quase nada -, mas, em meio a frases desconexas, uma palavra me saltou aos olhos: wish, que é desejo. E eu desejo tanto, nem sei o quê, mas desejo. Às vezes fecho os olhos e repito três vezes algum pedido, algum desejo, repito ao deus ou ao que chamam de deus, não sei ao certo, não sei a quem e nem sei se realmente acredito, nunca fui de acreditar em muitas coisas, mas talvez: o desejo baste. Wish, wish, wish repito comigo, sempre três vezes, só para ouvir a bonito som da palavra. E então faço um pedido com alguma esperança que nunca tive, nunca fui de ter fé nunca fui de ter muitas coisas, e então peço um desejo, qualquer coisa, qualquer coisa que se possa desejar.

Na placa, presumi, estava escrito ao final algo como deposite aqui uma moeda e faça um desejo. Havia um espaço para depositar dinheiro, uma caixa de bronze, cerâmica ou de alguma outra pedra, nunca fui bom para identificar tipos e pedras e todo o resto, e a caixa, pensei, parecia com alguns dos meus porquinhos que sempre tive na infância, esses porquinhos-cofre em que a gente deposita algum dinheiro, tive saudades dessa época e tive saudades dos meus porquinhos.
Peguei uma moeda, a maior que eu tinha, nunca fui de ter muito dinheiro nunca fui de ter muitas coisas, peguei uma moeda de dois pounds, segurei firme, estava gelada, queimava a mão, as moedas são sempre muito frias no inverno, pensei, e então me veio em mente que talvez eu também estivesse sempre muito frio neste meu inverno que já durava já-nem-lembro-quanto-tempo, não me lembro de muitas coisas. E então eu pensei em quantas moedas existiam abaixo daquele Pássaro Imponente, pensei em quantos desejos haviam sido desejados e em quantos pedidos desesperados haviam sido pedidos desesperadamente em frente ao Pássaro, aquele Pássaro. Quantas moedas haveriam ali? quantas nacionalidades? quantas estórias parecidas? quantas épocas? quantos desejos? quantos desejos? Será que teriam sido atendidos?

Com mãos firmes, segurei a moeda. Quantos reais valeriam dois pounds? não fazia ideia, nunca fui bom com dinheiro, tentei convertei em euros depois reais, desisti. Segurei ainda mais firme a moeda e desejei, desejei alguma coisa, I wished something, wish, wish, wish, digo agora em inglês para sentir o som da palavra. Nunca fui de crer, nunca fui de ter fé – mas talvez fosse o Pássaro ou talvez o clima mágico que me envolvia ou talvez por ser Londres e estar em Londres talvez fosse tão surreal que qualquer fé fosse possível. Talvez fosse, me veio agora, por eu estar querendo tanto e tanto e tanto que aquilo tudo fosse real – ah, e eu queria tanto que talvez por querer: talvez fosse real. Ela acreditava em anjos e, porque acreditava, eles existiam, lembrei de Clarice. E então, com um desejo tão forte e tão sincero e tão real de quem deseja e deseja mais que tudo – e então depositei a moeda, dois pounds, de olhos fechados. Queria tanto, sabe? e quando se quer muito, quando se quer de verdade, dizem, a coisa acontece. Quando se quer muito, tudo deveria acontecer. Acontecerá, pensei comigo mesmo. Assim será, assim será, assim será, repeti três vezes, em silêncio, só para o deus ouvir. Ou o Pássaro, quem sabe.

O Estrangeiro

16:34 postado por Thiago Terenzi

Ando pensando agora neste trem frio e silencioso, neste trem estrangeiro que liga nem sei quais cidades, nem importa, nunca importou, prefiro mesmo o caminho ao próprio destino. Ando pensando que quanto mais tentamos e buscamos desesperadamente ficar alheios, quanto mais nos perdemos de nós mesmos em busca de alguma outra Realidade Menos Dolorida – ando pensando que quanto mais fugimos - e a gente sempre foge –, mais impossível se torna a batalha. Se tivesse caneta, e nunca tenho, nunca levo muitas coisas, nunca levo nada além de algumas mudas de roupas neutras de qualquer lembrança Sua – se tivesse caneta, anotaria, tão grandioso me pareceu o pensamento.

Ando pensando também que este clima estranho e fechado e soturno e este frio cortante nos convidam à lembrança. E a lembrança é sempre perigosa. Este balanço suave e o barulho da leve camada de neve batendo sobre o vidro, o vento avançando sob as frestas num som agudo típico deste algum lugar do Leste Europeu (ou será França? Inglaterra? Irlanda? talvez algum lugar da Holanda visto o sotaque carregado murmurado entre as finas paredes do trem). Mas ando pensando que este clima propício nos leva à lembrança. Nos leva a querer exatamente o que buscávamos esquecer. Há alguma melancolia nestas terras estranhas que nos convida à catarse. Se tivesse caneta, penso eu novamente, escreveria. Mas nunca tive muito. Nunca fui de possuir, sempre preferi o feeling, o tactus da coisa.

Ando pensando sobretudo – e talvez influenciado pelo clima cinza e estranho deste sabe-se-lá-que-lugar, e ao contrario de toda a fuga planejada nos últimos tempos, New York Londres Berlim Oslo Amsterdam Budapeste e depois nem importava mais qual cidade qual país qual língua, importava apenas ir e ir e ir e buscar alguma coisa que ainda não sei mas saberei, tenho fé, eu acho – ando pensando em te ligar. Ontem ou anteontem, não me lembro, em alguma dessas cidades de céu sempre cinza, sempre noite, sempre triste, vi um senhor, talvez latino, talvez árabe vendendo cartão telefônico internacional. Sabe-se lá o porquê, nunca tenho para quem ligar, não sobraram muitas pessoas nunca tive muitas pessoas, peguei a carteira e procurei restos de euro ou pound, nem me lembro mais, nunca me lembro – e comprei. Ando desde então pensando em Te ligar.

E entre as estações e entre as cidades sempre escuras sempre frias sempre lindas sempre irritantemente lindas, e nos trens ou nos aviões ou nos ônibus, ando ensaiando alguma ligação. Ando ensaiando tantas coisas, acredite. Embora talvez não se valha mais a pena acreditar, já não importa mais ter fé. Ando ensaiando talvez Te dizer algo como. Já não sei mais, acho que não quero, a lembrança é difícil, as cicatrizes estão sempre meio abertas, meio doloridas, meio vivas. Talvez tenhamos destruído todas as possibilidades cedo demais, talvez tenhamos dito cedo demais aquilo que não se deve dizer. Porque éramos jovens, éramos crianças e havia muito para ser vivido, para ser experimentado, sempre há muito para se experimentar quando se é jovem. Eliminamos cedo demais todas as possibilidades – porque há palavras que não podem ser ditas, depois voltar atrás é tão difícil, tão difícil, Você sabe. Re-construir, aprendi com o tempo e com os bares e com o frio, é tão mais difícil que construir, sabe?

Talvez eu pudesse Te dizer tudo isso, talvez eu devesse, antes de mais nada, me dizer. Mas acho que esse frio e esses lugares-sem-identidade e essa neve gélida e essas noites eternas sempre noite sempre noite – acho que não sei mais dizer. Pensei em escrever, sempre fui bom com as letras, mas já não sei em que língua ainda sei sentir. Deve haver um porto, li um dia em algum livro talvez brasileiro irlandês inglês alemão espanhol ou português. Deve haver, repeti. Haverá.

Uma estória tristíssima

17:43 postado por Thiago Terenzi


a Luan Nogueira pela ideia.


Ah, é tudo tão igual que me enjoa. Você aí com esse ar de a-vida-me-é-cruel e vou-me-jogar-da-ponte mas no fundo é tudo igual. Você de rosto inchado de tanto chorar ascendendo esse cigarro molhado de chuva, tentando fazer o fogo pegar mas no fundo é sempre assim. Você culpando deus-destino-acaso-alá-jesus ou qualquer coisa do tipo mas não há culpados não. Tira esse ar patético de Homem Mais Triste do Mundo e vive. É tudo igual. É um filme sem graça que se repete, uma tragicomédia mal feita seguindo sempre aquele mesmo roteiro cult furado de clímax e anti-clímax.

Você aí chorando entre a bebida e o cigarro trancado em casa ou bebendo sozinho em algum boteco sujo de alguma rua escura e dirigindo rápido avançando sinais e cortando carros sempre bêbado fingindo não ter nada a perder. Mas você é só mais um, boy. São todos iguais. Discursinho de quero-morrer-que-os-deuses-não-me-amam olhar acuado voz embargada. Tudo igual. E você aí dirigindo rápido e bêbado e querendo quem sabe algum desastre enfim – mas não vai acontecer nada não. As tragicomédias são todas iguais: desastre vem quando se está distraído, quando se é tudo luz. E por enquanto é só autodestruição frustrada.

Por enquanto é você aí bêbado de vodca vagabunda, barba por fazer, carreiras escondidas no banheiro do boteco e algumas trepadas sem sentido, logo você que nunca viu sentido em sexo-sem-amor. Por enquanto é você acordando sozinho no quarto, sol na cara, ressaca nos olhos e boca seca de vômito. E então lhe vem na mente aquele poema bonito, Hilda Hilst talvez – é sempre algum poeta bêbadofrustrado – e finge declamá-lo altivo na cama a um corpo sem rosto que provavelmente nunca existirá. Nunca existirá. É sempre igual.

É sempre assim: alguns meses de porres e trepadas sem razão até algum dia num boteco qualquer, cansado de procuras no escuro e de ressacas intermináveis e de corpos estranhos e de fugas eternas e de tudo aquilo que se via no espelho e que não era – até que, naquele boteco você bêbado implorando socorro em silêncio, olhos vermelhos, barba por fazer. Até que.

É sempre assim, boy. As tragicomédias se repetem como num blockbuster americano: a mocinha é salva pelo cowboy. E então você é salvo de si mesmo. Como naqueles filmes sacados e mal feitos, a garotinha vê o garotinho e de repente num close clichê: se salvam. E a garota frágil e equilibrada recebe proteção e o mocinho forte e perdido enfim se encontra. Tudo sempre igual. E de repente Um Novo Grande Amor.

E então vocês se encontram e trepam de mãos dadas e corpos colados, como era o sexo Naquela Outra Vida agora meio distante embora presente. E então de corpos colados surge um olhar de súplica, algo como me salve estou tão perdido aqui é tão frio e escuro preciso de um norte preciso ter fé. alguma fé. fé. E dramático como um melodrama almodovariano ridiculamente inverossímil porque no fim somos todos ridiculamente inverossímeis – e ridiculamente dramático você finge ter medo, finge não querer sofrer outra vez, finge não estar pronto para o Tudo Aquilo Outra Vez. Ah, boy, é tudo sempre igual. Mas você se rende, não há escolha. Quando se trepa de mãos dadas e corpos colados – ah, não há mais escolhas. E você testa aquele corpo tão diferente Daquele Outro De Tempos Atrás e então se acostuma, se ajeita, se cabe. Não há volta, boy, é sempre igual.

E você enfim se rende aos novos sabores, novos olhares, novos quereres tão diferentes Daqueles Outros De Tempos Atrás. E então você se cabe e se vive enfim de uma outra vida que não Aquela Outra agora um pouco mais distante embora ainda presente – porque as cicatrizes assim como os resquícios dos excessos sempre estarão presentes. É inevitável, boy. É tudo tão igual que me enjoa.

Um colo

23:47 postado por Thiago Terenzi

“So how do I feel this good sober?”


Luzes, aplausos e toda aquela baboseira de orgulho-da-família e garota-problema-que-deu-certo-na-vida. Plateia fotos autógrafos sorrisos e programas de tevê. Tudo que todo mundo sempre quis e no entanto nada. No fim é só essa dor no peito e esse gosto de vômito na boca que nunca passa. Nunca passa, cara. No fim é esse movimento de luzes cidades e abraços sem motivo e sem sentido que nem ao menos aliviam mais a dor.

Ah, como eu queria sua vidinha sóbria, cara. Queria um porto, um lugar para deitar a dor. Um único lugar: nada de mil corpos sem identidade em quartos de hotel. Queria minha cama e meus caquinhos: meia dúzia de roupas, discos e um emprego de merda desses que nos fazem chegar em casa cansados e dormir com um beijo de boa noite. Lembra quando a gente tinha isso? Ah, a gente sempre teve tanta coisa, boy. É que o que a gente quer mesmo é esse sonho careta que no fundo todo mundo tem: rodar na roda e alugar um apartamento fodido e barato no trigésimo andar de algum prédio velho no centro e morar juntos.

Ah, eu só queria morar nesse prédio fodido, cara. Logo agora que consegui o que sempre quis – só quero o prédio. Logo agora: programa de tevê me dizendo ser grande-nome-da-música-contemporânea, dinheiro, bebida e toda essa merda que chamam de chegar-lá. Cheguei. E quero ir embora. Odeio o palco e odeio que cantem minhas dores. Ah, cara, acho mesmo é que odeio a música e tudo isso que chamam de arte. Odeio luzes aplausos e autógrafos. Odeio a loucura e os que vivem na noite.

Somos todos fodidos, repito sempre entre o pó do camarim e as luzes do show. E choro e choro e choro e me vem uma vontade estranha de fugir do palco e ir te ver. Como antes. Como sempre. E deitar no seu colo como uma menina medrosa e chorar e chorar enquanto você sussurra calma, bebê, eu tô aqui, e eu me acalmo e durmo com os olhos meio abertos como sempre dormi, e você rindo meio alto para que quem sabe eu acorde e então te sorria aquele meu sorriso charmoso de preguiça contida. Ah, boy, mas nem tenho coragem. Sou medrosa e desesperançada. Sempre com esse ar meio infeliz. Vou é subir no palco e tristíssima gritar minhas dores e ganhar aplausos encorpados – e ganhar aplausos pela própria dor.

O que queria era dizer – antes que esse show comece e eu seja empurrada ao palco e aos flashes e ao uísque e aos sorrisos forçados e aos abraços de parabéns-você-é-um-talento – ah, o que eu queria era dizer que guardei uma grana e dá para alugar um apartamento apertado no Maletta sem luxo ou coisa do tipo, mas a gente pinta, eu sei pintar e tenho um emprego em vista, enquanto isso vivo da música, componho bem, dá um trocado, tenho contatos. E você diria – e diria apenas no meu sonho, mas juro que diria, boy – diria temos que fazer economias, amor, precisamos de algum dinheiro guardado, não podemos fazer loucuras sem pensar. Morar juntos é coisa séria. Mas sou pé-no-chão, cara, sei que no fundo riria da minha cara. Morar com alguma ex-cantora fodida não faz seu tipo. Ainda mais eu e meus erros infinitos que nunca admito. Ainda mais eu que ando errando tanto e tanto e tanto.

E então eu canto porque no fundo é o que resta. Canto aos berros como que buscando alguma salvação, algum porto que me seja de direito. E quando as luzes se apagam choro e choro e choro e choro porque transformaram-me em mulher-da-noite-louca-e-multitalentosa. Logo eu que sou menina frágil e ridiculamente convencional. Logo eu que queria apenas um sorriso e um sussurro cantarolando Cazuza meio desafinado dizendo pelos cantos da boca num sorriso infantil: é que eu preciso dizer que te amo tanto.

Um telefonema

18:00 postado por Thiago Terenzi

Nervosa sob o espelho, reflexo de seu próprio reflexo, olhos fitando a si próprios – nervosa ela seguia, mansa, doída. Mas seguia. E dizia em voz trêmula a si mesma (quem sabe ao próprio reflexo) dizia, sim, vou ligar. E decidida e frágil e errante e cheia de dúvidas – como de fato são os heróis de carne e osso, se é que existam heróis – ela quis ligar. Não que antes não quisesse, mas –. Difícil dizer. Difícil dizer sobre o antes quando nem ao menos tem-se o depois. É que desde aquele dia em que algo sem nome morrera: não havia antes ou depois. Havia o desde então.

E desde então ela disse num sussurro à sua própria imagem refletida, disse sim, vou ligar. E bebeu mais um gole da bebida e pensou que diria olá, gostaria de te convidar para uma festa aqui em casa, mas pensou que seria formal demais e não havia motivos para mais barreiras que os muros infinitos que já os separavam. Depois pensou em dizer oi, vem aqui amanhã, festinha só para os íntimos, porque haviam sido íntimos e intimidade, quando da alma, é eterna. Mas depois lembrou que nem haveria festa e nem havia intimidade ou amigos. Não havia restado muito além da dor e alguma bebida quente no armário entre a geladeira e a janela fechada. Sempre fechada.

Então diria oi, como vai? liguei pra saber as novidades, vai mesmo viajar? Irlanda? Europa dizem que é linda. Diria como se não houvesse qualquer abismo, na esperança de que eles tivessem de fato desaparecido – mas havia abismos. Que fazer de um silêncio sólido? Que fazer quando – porque iria – receber ao telefone o silêncio da falta de sentido?

Não havia espaço para faltas de sentido. Não havia espaço para fraquezas ou telefonemas bêbados e inesperados às três e quinze da madrugada como se nada tivesse acontecido. Não havia espaço para recuperar o irrecuperável. Eis a tragédia da vida, pensou ela entre um gole amargo da bebida e um sorriso irônico e descrente.

Ela, naquele ponto da madrugada e da embriaguez (talvez mais embriaguez que madrugada, porque nem parecia ser assim tão tarde) – ela nem sequer lembrava do que havia acontecido. Alguma briga, algum resquício de orgulho idiota, alguma imaturidade infantil; ou talvez algo grave, uma palavra irremediável – ah, como tinha talento para dizer o irrecuperável –, uma descrença sem motivo ou sabe-se lá o que mais. Não importava motivos. Nunca importaram.

Importa dizer que ela ligou – ah, ela ligaria hora ou outra da madrugada. Chamou uma, duas vezes. Desligou – ah, ela hesitaria, jamais esteve preparada para o silêncio. É que tinha bebido e a bebida poderia lhe atropelar as palavras. Depois de tanto abismo a bebida lhe falharia a voz, se enrolaria num cumprimento embolado – nunca havia sido forte para o álcool. Nunca havia sido forte. Desligou o telefone.

Aquilo

12:57 postado por Thiago Terenzi

A gente sabe, gato, a gente sabe quando começa Aquilo. Alguma bebida no copo, talvez cerveja nem me lembro, estava calor – é devia ser cerveja. Alguma bebida, algum filme cult europeu, algum carinho e alguma solidão. Alguma vontade tímida e um monte de medos e inseguranças também. Tudo muito bem maquiado naquele meu jeito de garota-sem-recalques-nem-problemas, sabe? e o seu olhar de homem-plenamente-feliz já meio embargado pelo álcool.

E eu bebendo aquele copo de nem-me-lembro-o-quê que provavelmente era cerveja – a gente sempre acaba nela – e segurando o copo porque precisava segurar, sou inquieta você sabe, se não tenho nada nas mãos enlouqueço. E disfarçando a inquietude e bebendo já meio zonza e você rindo se fazendo de homem-forte-pra-bebida sem nem saber que já estava tonto. Ah, gato, a gente sabe quando começa Aquilo.

De repente aquela vontade de te ler alguma coisa, eu querendo recitar livros, Bandeira Clarice Caio Fernando Hilda Hilst – ah, Hildinha cairia bem, te diria ah, a vida é líquida, e você riria sem entender muita coisa. Mas nem disse nada, não digo muito. Devo ter bebido outro gole e você assustado me achando excessivamente alcoólatra e eu assustada sem querer parecer excessivamente bêbada embora estivesse de fato bêbada – e me fosse de fato aos excessos. E você me olhando com seus olhos de homem-plenamente-feliz embora não fosse nem feliz nem pleno, mas nem importava.

E então a gente soube entre um álcool e outro – filme na tevê, provavelmente cinema espanhol ou italiano, luzes apagadas e barulho dos carros lá fora – e então a gente soube. A gente sempre sabe quando começa. Porque naquele instante éramos nós dois sem máscaras ou teatro, nada de garota-sem-recalques ou homenzinho-forte-e-feliz, éramos sós e nus. Cheio de medos e pés atrás você disse este sou eu, e eu sussurrei alguma coisa bonita, talvez uma música, não me lembro. Talvez nem tenha dito nada, vai saber. A memória sempre nos rouba o mais importante.

De repente eu queria dizer – ah, eu e minha mania chata de sempre querer dizer. E dizia e dizia sempre em silêncio sempre sem mexer os lábios e você entendia e dizia também sem palavras fecha os olhos que assim a gente congela o instante. E a gente meio bêbado fechava os olhos e o mundo rodava e rodava mas nem tínhamos medo e eu semicerrava forte a visão para fazer do instante eternidade. Ah gato, já sou velha demais para acreditar em eternidades de modo que sabia que aquele único segundo era a minha salvação. Era aquela partícula de tempo e só. Depois viriam ódios ciúmes discussões e um monte de coisas boas mas que jamais seriam Aquilo. E depois viria as tentativas desesperadas de salvar o que já estaria morto, aquela coisa desgastante de remediar o irremediável e fazer política do amor... Mas naquele instante, naquele único instante estávamos salvos. Completamente salvos porque nós mesmos nos salvávamos.

Ah, gato, a gente sempre sabe quando começa Aquilo.

Comédia romântica

12:30 postado por Thiago Terenzi

E mesmo hesitante entre caminhos tortos tateando cego em busca de alguma calmaria que lhe fosse de direito, mesmo trêmulo e vacilante entre os prédios e os concretos de cidade-mais-ou-menos-grande de mendigos prostitutas drogas fáceis e alguma solidão, mesmo entre o frio de algum inverno de tempo-louco-de-cidade-mais-ou-menos-grande, mesmo apesar de sabe-se-lá-o-quê – ele disse: – escuta: vamos tentar. Não que seja fácil ou que consigamos – provavelmente nem conseguiremos, quem consegue? mas vamos tentar que a tentativa por si só liberta.

Escuta: vamos tentar porque eu não quero me render – eu não quero nos render. Quero lutar e remar e buscar qualquer utopia perdida em alguma esquina torta que ainda não conheço. É que a gente se salva é pelo caminho – a tentativa é que salva. O final é só o final: a legenda sobe, as luzes se ascendem e pronto. Acaba. O filme acontece é no erro. A gente acontece é no erro. É no imbróglio que se vale a pena.

E então a gente despe as máscaras e tenta. De olhos fechados como tem que ser. A gente finge ter quinze anos e não ter traumas barba vícios responsabilidades pés atrás bons modos e toda essa merda que limita. A gente esquece os outros dez amores, trinta desilusões, cinqüenta trepadas inúteis entre um álcool e outro – e então a gente tenta. Acredita em fada duende papai noel deus comunismo e amor eterno outra vez.

Escuta: vamos tentar que eu te quero bem. Gosto do seu jeito perdido porque eu também estou perdido e já que não se pode encontrar o caminho – que então nos encontremos. E então a gente rema, juntos, e erra e acerta e chora e se diverte e se precisa e se descobre como fazem as crianças apaixonadas aos quinze anos.
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