Uma estória tristíssima
17:43 postado por Thiago Terenzi
Ah, é tudo tão igual que me enjoa. Você aí com esse ar de a-vida-me-é-cruel e vou-me-jogar-da-ponte mas no fundo é tudo igual. Você de rosto inchado de tanto chorar ascendendo esse cigarro molhado de chuva, tentando fazer o fogo pegar mas no fundo é sempre assim. Você culpando deus-destino-acaso-alá-jesus ou qualquer coisa do tipo mas não há culpados não. Tira esse ar patético de Homem Mais Triste do Mundo e vive. É tudo igual. É um filme sem graça que se repete, uma tragicomédia mal feita seguindo sempre aquele mesmo roteiro cult furado de clímax e anti-clímax.
Você aí chorando entre a bebida e o cigarro trancado em casa ou bebendo sozinho em algum boteco sujo de alguma rua escura e dirigindo rápido avançando sinais e cortando carros sempre bêbado fingindo não ter nada a perder. Mas você é só mais um, boy. São todos iguais. Discursinho de quero-morrer-que-os-deuses-não-me-amam olhar acuado voz embargada. Tudo igual. E você aí dirigindo rápido e bêbado e querendo quem sabe algum desastre enfim – mas não vai acontecer nada não. As tragicomédias são todas iguais: desastre vem quando se está distraído, quando se é tudo luz. E por enquanto é só autodestruição frustrada.
Por enquanto é você aí bêbado de vodca vagabunda, barba por fazer, carreiras escondidas no banheiro do boteco e algumas trepadas sem sentido, logo você que nunca viu sentido em sexo-sem-amor. Por enquanto é você acordando sozinho no quarto, sol na cara, ressaca nos olhos e boca seca de vômito. E então lhe vem na mente aquele poema bonito, Hilda Hilst talvez – é sempre algum poeta bêbadofrustrado – e finge declamá-lo altivo na cama a um corpo sem rosto que provavelmente nunca existirá. Nunca existirá. É sempre igual.
É sempre assim: alguns meses de porres e trepadas sem razão até algum dia num boteco qualquer, cansado de procuras no escuro e de ressacas intermináveis e de corpos estranhos e de fugas eternas e de tudo aquilo que se via no espelho e que não era – até que, naquele boteco você bêbado implorando socorro em silêncio, olhos vermelhos, barba por fazer. Até que.
É sempre assim, boy. As tragicomédias se repetem como num blockbuster americano: a mocinha é salva pelo cowboy. E então você é salvo de si mesmo. Como naqueles filmes sacados e mal feitos, a garotinha vê o garotinho e de repente num close clichê: se salvam. E a garota frágil e equilibrada recebe proteção e o mocinho forte e perdido enfim se encontra. Tudo sempre igual. E de repente Um Novo Grande Amor.
E então vocês se encontram e trepam de mãos dadas e corpos colados, como era o sexo Naquela Outra Vida agora meio distante embora presente. E então de corpos colados surge um olhar de súplica, algo como me salve estou tão perdido aqui é tão frio e escuro preciso de um norte preciso ter fé. alguma fé. fé. E dramático como um melodrama almodovariano ridiculamente inverossímil porque no fim somos todos ridiculamente inverossímeis – e ridiculamente dramático você finge ter medo, finge não querer sofrer outra vez, finge não estar pronto para o Tudo Aquilo Outra Vez. Ah, boy, é tudo sempre igual. Mas você se rende, não há escolha. Quando se trepa de mãos dadas e corpos colados – ah, não há mais escolhas. E você testa aquele corpo tão diferente Daquele Outro De Tempos Atrás e então se acostuma, se ajeita, se cabe. Não há volta, boy, é sempre igual.
E você enfim se rende aos novos sabores, novos olhares, novos quereres tão diferentes Daqueles Outros De Tempos Atrás. E então você se cabe e se vive enfim de uma outra vida que não Aquela Outra agora um pouco mais distante embora ainda presente – porque as cicatrizes assim como os resquícios dos excessos sempre estarão presentes. É inevitável, boy. É tudo tão igual que me enjoa.
Um colo
23:47 postado por Thiago Terenzi
Luzes, aplausos e toda aquela baboseira de orgulho-da-família e garota-problema-que-deu-certo-na-vida. Plateia fotos autógrafos sorrisos e programas de tevê. Tudo que todo mundo sempre quis e no entanto nada. No fim é só essa dor no peito e esse gosto de vômito na boca que nunca passa. Nunca passa, cara. No fim é esse movimento de luzes cidades e abraços sem motivo e sem sentido que nem ao menos aliviam mais a dor.
Ah, como eu queria sua vidinha sóbria, cara. Queria um porto, um lugar para deitar a dor. Um único lugar: nada de mil corpos sem identidade em quartos de hotel. Queria minha cama e meus caquinhos: meia dúzia de roupas, discos e um emprego de merda desses que nos fazem chegar em casa cansados e dormir com um beijo de boa noite. Lembra quando a gente tinha isso? Ah, a gente sempre teve tanta coisa, boy. É que o que a gente quer mesmo é esse sonho careta que no fundo todo mundo tem: rodar na roda e alugar um apartamento fodido e barato no trigésimo andar de algum prédio velho no centro e morar juntos.
Ah, eu só queria morar nesse prédio fodido, cara. Logo agora que consegui o que sempre quis – só quero o prédio. Logo agora: programa de tevê me dizendo ser grande-nome-da-música-contemporânea, dinheiro, bebida e toda essa merda que chamam de chegar-lá. Cheguei. E quero ir embora. Odeio o palco e odeio que cantem minhas dores. Ah, cara, acho mesmo é que odeio a música e tudo isso que chamam de arte. Odeio luzes aplausos e autógrafos. Odeio a loucura e os que vivem na noite.
Somos todos fodidos, repito sempre entre o pó do camarim e as luzes do show. E choro e choro e choro e me vem uma vontade estranha de fugir do palco e ir te ver. Como antes. Como sempre. E deitar no seu colo como uma menina medrosa e chorar e chorar enquanto você sussurra calma, bebê, eu tô aqui, e eu me acalmo e durmo com os olhos meio abertos como sempre dormi, e você rindo meio alto para que quem sabe eu acorde e então te sorria aquele meu sorriso charmoso de preguiça contida. Ah, boy, mas nem tenho coragem. Sou medrosa e desesperançada. Sempre com esse ar meio infeliz. Vou é subir no palco e tristíssima gritar minhas dores e ganhar aplausos encorpados – e ganhar aplausos pela própria dor.
O que queria era dizer – antes que esse show comece e eu seja empurrada ao palco e aos flashes e ao uísque e aos sorrisos forçados e aos abraços de parabéns-você-é-um-talento – ah, o que eu queria era dizer que guardei uma grana e dá para alugar um apartamento apertado no Maletta sem luxo ou coisa do tipo, mas a gente pinta, eu sei pintar e tenho um emprego em vista, enquanto isso vivo da música, componho bem, dá um trocado, tenho contatos. E você diria – e diria apenas no meu sonho, mas juro que diria, boy – diria temos que fazer economias, amor, precisamos de algum dinheiro guardado, não podemos fazer loucuras sem pensar. Morar juntos é coisa séria. Mas sou pé-no-chão, cara, sei que no fundo riria da minha cara. Morar com alguma ex-cantora fodida não faz seu tipo. Ainda mais eu e meus erros infinitos que nunca admito. Ainda mais eu que ando errando tanto e tanto e tanto.
E então eu canto porque no fundo é o que resta. Canto aos berros como que buscando alguma salvação, algum porto que me seja de direito. E quando as luzes se apagam choro e choro e choro e choro porque transformaram-me em mulher-da-noite-louca-e-multitalentosa. Logo eu que sou menina frágil e ridiculamente convencional. Logo eu que queria apenas um sorriso e um sussurro cantarolando Cazuza meio desafinado dizendo pelos cantos da boca num sorriso infantil: é que eu preciso dizer que te amo tanto.
Um telefonema
18:00 postado por Thiago Terenzi
E desde então ela disse num sussurro à sua própria imagem refletida, disse sim, vou ligar. E bebeu mais um gole da bebida e pensou que diria olá, gostaria de te convidar para uma festa aqui em casa, mas pensou que seria formal demais e não havia motivos para mais barreiras que os muros infinitos que já os separavam. Depois pensou em dizer oi, vem aqui amanhã, festinha só para os íntimos, porque haviam sido íntimos e intimidade, quando da alma, é eterna. Mas depois lembrou que nem haveria festa e nem havia intimidade ou amigos. Não havia restado muito além da dor e alguma bebida quente no armário entre a geladeira e a janela fechada. Sempre fechada.
Então diria oi, como vai? liguei pra saber as novidades, vai mesmo viajar? Irlanda? Europa dizem que é linda. Diria como se não houvesse qualquer abismo, na esperança de que eles tivessem de fato desaparecido – mas havia abismos. Que fazer de um silêncio sólido? Que fazer quando – porque iria – receber ao telefone o silêncio da falta de sentido?
Não havia espaço para faltas de sentido. Não havia espaço para fraquezas ou telefonemas bêbados e inesperados às três e quinze da madrugada como se nada tivesse acontecido. Não havia espaço para recuperar o irrecuperável. Eis a tragédia da vida, pensou ela entre um gole amargo da bebida e um sorriso irônico e descrente.
Ela, naquele ponto da madrugada e da embriaguez (talvez mais embriaguez que madrugada, porque nem parecia ser assim tão tarde) – ela nem sequer lembrava do que havia acontecido. Alguma briga, algum resquício de orgulho idiota, alguma imaturidade infantil; ou talvez algo grave, uma palavra irremediável – ah, como tinha talento para dizer o irrecuperável –, uma descrença sem motivo ou sabe-se lá o que mais. Não importava motivos. Nunca importaram.
Importa dizer que ela ligou – ah, ela ligaria hora ou outra da madrugada. Chamou uma, duas vezes. Desligou – ah, ela hesitaria, jamais esteve preparada para o silêncio. É que tinha bebido e a bebida poderia lhe atropelar as palavras. Depois de tanto abismo a bebida lhe falharia a voz, se enrolaria num cumprimento embolado – nunca havia sido forte para o álcool. Nunca havia sido forte. Desligou o telefone.
Aquilo
12:57 postado por Thiago Terenzi
A gente sabe, gato, a gente sabe quando começa Aquilo. Alguma bebida no copo, talvez cerveja nem me lembro, estava calor – é devia ser cerveja. Alguma bebida, algum filme cult europeu, algum carinho e alguma solidão. Alguma vontade tímida e um monte de medos e inseguranças também. Tudo muito bem maquiado naquele meu jeito de garota-sem-recalques-nem-problemas, sabe? e o seu olhar de homem-plenamente-feliz já meio embargado pelo álcool.
E eu bebendo aquele copo de nem-me-lembro-o-quê que provavelmente era cerveja – a gente sempre acaba nela – e segurando o copo porque precisava segurar, sou inquieta você sabe, se não tenho nada nas mãos enlouqueço. E disfarçando a inquietude e bebendo já meio zonza e você rindo se fazendo de homem-forte-pra-bebida sem nem saber que já estava tonto. Ah, gato, a gente sabe quando começa Aquilo.
De repente aquela vontade de te ler alguma coisa, eu querendo recitar livros, Bandeira Clarice Caio Fernando Hilda Hilst – ah, Hildinha cairia bem, te diria ah, a vida é líquida, e você riria sem entender muita coisa. Mas nem disse nada, não digo muito. Devo ter bebido outro gole e você assustado me achando excessivamente alcoólatra e eu assustada sem querer parecer excessivamente bêbada embora estivesse de fato bêbada – e me fosse de fato aos excessos. E você me olhando com seus olhos de homem-plenamente-feliz embora não fosse nem feliz nem pleno, mas nem importava.
E então a gente soube entre um álcool e outro – filme na tevê, provavelmente cinema espanhol ou italiano, luzes apagadas e barulho dos carros lá fora – e então a gente soube. A gente sempre sabe quando começa. Porque naquele instante éramos nós dois sem máscaras ou teatro, nada de garota-sem-recalques ou homenzinho-forte-e-feliz, éramos sós e nus. Cheio de medos e pés atrás você disse este sou eu, e eu sussurrei alguma coisa bonita, talvez uma música, não me lembro. Talvez nem tenha dito nada, vai saber. A memória sempre nos rouba o mais importante.
De repente eu queria dizer – ah, eu e minha mania chata de sempre querer dizer. E dizia e dizia sempre em silêncio sempre sem mexer os lábios e você entendia e dizia também sem palavras fecha os olhos que assim a gente congela o instante. E a gente meio bêbado fechava os olhos e o mundo rodava e rodava mas nem tínhamos medo e eu semicerrava forte a visão para fazer do instante eternidade. Ah gato, já sou velha demais para acreditar em eternidades de modo que sabia que aquele único segundo era a minha salvação. Era aquela partícula de tempo e só. Depois viriam ódios ciúmes discussões e um monte de coisas boas mas que jamais seriam Aquilo. E depois viria as tentativas desesperadas de salvar o que já estaria morto, aquela coisa desgastante de remediar o irremediável e fazer política do amor... Mas naquele instante, naquele único instante estávamos salvos. Completamente salvos porque nós mesmos nos salvávamos.
Ah, gato, a gente sempre sabe quando começa Aquilo.
E eu bebendo aquele copo de nem-me-lembro-o-quê que provavelmente era cerveja – a gente sempre acaba nela – e segurando o copo porque precisava segurar, sou inquieta você sabe, se não tenho nada nas mãos enlouqueço. E disfarçando a inquietude e bebendo já meio zonza e você rindo se fazendo de homem-forte-pra-bebida sem nem saber que já estava tonto. Ah, gato, a gente sabe quando começa Aquilo.
De repente aquela vontade de te ler alguma coisa, eu querendo recitar livros, Bandeira Clarice Caio Fernando Hilda Hilst – ah, Hildinha cairia bem, te diria ah, a vida é líquida, e você riria sem entender muita coisa. Mas nem disse nada, não digo muito. Devo ter bebido outro gole e você assustado me achando excessivamente alcoólatra e eu assustada sem querer parecer excessivamente bêbada embora estivesse de fato bêbada – e me fosse de fato aos excessos. E você me olhando com seus olhos de homem-plenamente-feliz embora não fosse nem feliz nem pleno, mas nem importava.
E então a gente soube entre um álcool e outro – filme na tevê, provavelmente cinema espanhol ou italiano, luzes apagadas e barulho dos carros lá fora – e então a gente soube. A gente sempre sabe quando começa. Porque naquele instante éramos nós dois sem máscaras ou teatro, nada de garota-sem-recalques ou homenzinho-forte-e-feliz, éramos sós e nus. Cheio de medos e pés atrás você disse este sou eu, e eu sussurrei alguma coisa bonita, talvez uma música, não me lembro. Talvez nem tenha dito nada, vai saber. A memória sempre nos rouba o mais importante.
De repente eu queria dizer – ah, eu e minha mania chata de sempre querer dizer. E dizia e dizia sempre em silêncio sempre sem mexer os lábios e você entendia e dizia também sem palavras fecha os olhos que assim a gente congela o instante. E a gente meio bêbado fechava os olhos e o mundo rodava e rodava mas nem tínhamos medo e eu semicerrava forte a visão para fazer do instante eternidade. Ah gato, já sou velha demais para acreditar em eternidades de modo que sabia que aquele único segundo era a minha salvação. Era aquela partícula de tempo e só. Depois viriam ódios ciúmes discussões e um monte de coisas boas mas que jamais seriam Aquilo. E depois viria as tentativas desesperadas de salvar o que já estaria morto, aquela coisa desgastante de remediar o irremediável e fazer política do amor... Mas naquele instante, naquele único instante estávamos salvos. Completamente salvos porque nós mesmos nos salvávamos.
Ah, gato, a gente sempre sabe quando começa Aquilo.
Comédia romântica
12:30 postado por Thiago Terenzi
E mesmo hesitante entre caminhos tortos tateando cego em busca de alguma calmaria que lhe fosse de direito, mesmo trêmulo e vacilante entre os prédios e os concretos de cidade-mais-ou-menos-grande de mendigos prostitutas drogas fáceis e alguma solidão, mesmo entre o frio de algum inverno de tempo-louco-de-cidade-mais-ou-menos-grande, mesmo apesar de sabe-se-lá-o-quê – ele disse: – escuta: vamos tentar. Não que seja fácil ou que consigamos – provavelmente nem conseguiremos, quem consegue? mas vamos tentar que a tentativa por si só liberta.
Escuta: vamos tentar porque eu não quero me render – eu não quero nos render. Quero lutar e remar e buscar qualquer utopia perdida em alguma esquina torta que ainda não conheço. É que a gente se salva é pelo caminho – a tentativa é que salva. O final é só o final: a legenda sobe, as luzes se ascendem e pronto. Acaba. O filme acontece é no erro. A gente acontece é no erro. É no imbróglio que se vale a pena.
E então a gente despe as máscaras e tenta. De olhos fechados como tem que ser. A gente finge ter quinze anos e não ter traumas barba vícios responsabilidades pés atrás bons modos e toda essa merda que limita. A gente esquece os outros dez amores, trinta desilusões, cinqüenta trepadas inúteis entre um álcool e outro – e então a gente tenta. Acredita em fada duende papai noel deus comunismo e amor eterno outra vez.
Escuta: vamos tentar que eu te quero bem. Gosto do seu jeito perdido porque eu também estou perdido e já que não se pode encontrar o caminho – que então nos encontremos. E então a gente rema, juntos, e erra e acerta e chora e se diverte e se precisa e se descobre como fazem as crianças apaixonadas aos quinze anos.
Escuta: vamos tentar porque eu não quero me render – eu não quero nos render. Quero lutar e remar e buscar qualquer utopia perdida em alguma esquina torta que ainda não conheço. É que a gente se salva é pelo caminho – a tentativa é que salva. O final é só o final: a legenda sobe, as luzes se ascendem e pronto. Acaba. O filme acontece é no erro. A gente acontece é no erro. É no imbróglio que se vale a pena.
E então a gente despe as máscaras e tenta. De olhos fechados como tem que ser. A gente finge ter quinze anos e não ter traumas barba vícios responsabilidades pés atrás bons modos e toda essa merda que limita. A gente esquece os outros dez amores, trinta desilusões, cinqüenta trepadas inúteis entre um álcool e outro – e então a gente tenta. Acredita em fada duende papai noel deus comunismo e amor eterno outra vez.
Escuta: vamos tentar que eu te quero bem. Gosto do seu jeito perdido porque eu também estou perdido e já que não se pode encontrar o caminho – que então nos encontremos. E então a gente rema, juntos, e erra e acerta e chora e se diverte e se precisa e se descobre como fazem as crianças apaixonadas aos quinze anos.
Um porto
23:42 postado por Thiago Terenzi
Era assim: algumas cervejas no bar, duas ou três tequilas e um daqueles inferninhos imundos da cidade – um daqueles onde se encontram os que restaram. E ele restara.
Os inferninhos eram todos iguais: uma porta apagada num canto deserto, dois lances de degraus melados num misto de cerveja e vômito, um balcão com duas ou três cervejas importadas e um banheiro onde se espremem os que o querem para sexo, mijo ou cheirar pó. E ele nem queria o banheiro.
Na pista – de onde estava conseguia enxergar com alguma dificuldade –, rostos sem identidade suados pela batida eletrônica ritmada comandada por um DJ que nem ao menos sabia tocar – mas tentava. Era ali, aliás, a noite das tentativas. Os corpos na pista se tentavam em busca um do outro para encarar a madrugada sempre fria. Os olhos tentavam alguma luz em meio à solidez rude dos cantos escuros. E ele tentava alguma coisa que ainda não sabia. E em busca dessa tentativa cega, estava ali: cerveja importada em mãos, sorriso vazio disfarçando a solidão e corpo se movimentando errante ao ritmo do som.
Qual o seu nome? perguntou cego a sabe-se-lá-quem e recebeu como resposta talvez um nome ou um isso importa?, nem se lembra mais. Depois ouviu-se frases soltas como gostei de você ou você trabalha ou só estuda? ou essa música é uma das minhas preferidas. Depois veio o beijo e permitiu-se então – por alguns instantes – terem-se um ao outro. Depois veio algo como sou de peixes e você? você tem um rosto lindo moro sozinho quer ir na minha casa escutar música e beber vinho? tenho alguns discos de rock e pizza na geladeira.
Depois treparam de mãos dadas com os dedos entrelaçados como fazem os casais apaixonados aos cinco meses de namoro e se abraçaram como se fossem necessários um ao outro. Fumaram um ou dois Marlboros vermelhos ainda nus e melados exaustos naquela cama de solteiro e se disseram até logo ou até nunca, difícil saber.
Os inferninhos eram todos iguais: uma porta apagada num canto deserto, dois lances de degraus melados num misto de cerveja e vômito, um balcão com duas ou três cervejas importadas e um banheiro onde se espremem os que o querem para sexo, mijo ou cheirar pó. E ele nem queria o banheiro.
Na pista – de onde estava conseguia enxergar com alguma dificuldade –, rostos sem identidade suados pela batida eletrônica ritmada comandada por um DJ que nem ao menos sabia tocar – mas tentava. Era ali, aliás, a noite das tentativas. Os corpos na pista se tentavam em busca um do outro para encarar a madrugada sempre fria. Os olhos tentavam alguma luz em meio à solidez rude dos cantos escuros. E ele tentava alguma coisa que ainda não sabia. E em busca dessa tentativa cega, estava ali: cerveja importada em mãos, sorriso vazio disfarçando a solidão e corpo se movimentando errante ao ritmo do som.
Qual o seu nome? perguntou cego a sabe-se-lá-quem e recebeu como resposta talvez um nome ou um isso importa?, nem se lembra mais. Depois ouviu-se frases soltas como gostei de você ou você trabalha ou só estuda? ou essa música é uma das minhas preferidas. Depois veio o beijo e permitiu-se então – por alguns instantes – terem-se um ao outro. Depois veio algo como sou de peixes e você? você tem um rosto lindo moro sozinho quer ir na minha casa escutar música e beber vinho? tenho alguns discos de rock e pizza na geladeira.
Depois treparam de mãos dadas com os dedos entrelaçados como fazem os casais apaixonados aos cinco meses de namoro e se abraçaram como se fossem necessários um ao outro. Fumaram um ou dois Marlboros vermelhos ainda nus e melados exaustos naquela cama de solteiro e se disseram até logo ou até nunca, difícil saber.
É tudo luz e sonho
00:52 postado por Thiago Terenzi
É que a noite é onde os que não pertencem se encontram – vento frio e gélido sobre os corpos e os rostos assustados, como são os rostos e os corpos daqueles que nos são estrangeiros. E ela, estrangeira que era, não pertencia. E habitava a noite, como habitavam aquele lugar todos os seres errantes que vagavam imundos pela madrugada.
Ela, sentada às duas e vinte naquele bar-de-gente-imunda-e-estrangeira, ela: sorria. Não que houvesse qualquer instante de felicidade – embora anos mais tarde reconhecesse aquele momento como o de uma felicidade nostálgica e bonita – mas é que ali lhe era permitido o sorriso. E ela sorria apenas porque não lhe tiravam direito. É que na noite não havia direitos roubados. É tudo luz e sonho, ouviu numa música tempos atrás. E solidão, completou.
É tudo luz e sonho, cantarolou num sussurro baixinho e depois cantarolou de novo e de novo – é que aquilo era tudo o que a memória lhe permitia gravar. E repetiu incansavelmente aquela melodia turva e aconchegante porque repeti-la era maneira de se fazer do mundo de fato: luz e sonho. Apenas anos mais tarde, já velha e sozinha (como são as mulheres solteiras aos quarenta) é que descobriria a veracidade do que cantava. É tudo luz e sonho.
E de repente – porque na noite há apenas os de repentes – uma mulher que também não pertencia reconheceu-a. As mulheres estrangeiras se reconhecem pelo olhar – e pelos cabelos mais ou menos ensebados de dois dias sem lavar, porque na noite não há tempo.
- Tem fogo?
- Eu sempre tenho fogo e cigarro.
Qual delas disse o quê não importa. Nem importam os cigarros e o diálogo. É que em alguma entrelinha daquele instante elas se diziam algo de necessário. Era algo como aqui dói e sei que em você também, por isso preciso de você porque você me faz conseguir alguma coisa que nem sei. Só me deixa sentar aqui e beber uma vodca contigo que é tão difícil enfrentar a noite, cê nem imagina. Juro que quando o sol nascer eu vou embora dormir bêbada e sozinha na minha cama fria e cruel – mas por enquanto só me deixa aqui que eu te deixo também.
E ao emprestar o isqueiro a outra dizia em entrelinha senta e fica porque preciso da sua solidão. Olha, só por esta noite, vamos pertencer, vamos nos pertencer? Eu te amo porque eu quero amar mas acho que não sei – então eu te amo. Me ama também porque amar é tão bonito.
Obviamente nenhuma delas disse nada daquilo – apenas conversaram como conversam as mulheres bêbadas que fingem não serem estrangeiras. Mas em algum lugar dos seus olhares elas se abraçaram. E enquanto uma pensava em perguntar algo que lera certa vez em um livro, algo como será amar dar ao outro a própria solidão?, a outra dizia em pensamento fecha os olhos e acalma. É tudo luz e sonho.
É tudo luz e sonho.
Ela, sentada às duas e vinte naquele bar-de-gente-imunda-e-estrangeira, ela: sorria. Não que houvesse qualquer instante de felicidade – embora anos mais tarde reconhecesse aquele momento como o de uma felicidade nostálgica e bonita – mas é que ali lhe era permitido o sorriso. E ela sorria apenas porque não lhe tiravam direito. É que na noite não havia direitos roubados. É tudo luz e sonho, ouviu numa música tempos atrás. E solidão, completou.
É tudo luz e sonho, cantarolou num sussurro baixinho e depois cantarolou de novo e de novo – é que aquilo era tudo o que a memória lhe permitia gravar. E repetiu incansavelmente aquela melodia turva e aconchegante porque repeti-la era maneira de se fazer do mundo de fato: luz e sonho. Apenas anos mais tarde, já velha e sozinha (como são as mulheres solteiras aos quarenta) é que descobriria a veracidade do que cantava. É tudo luz e sonho.
E de repente – porque na noite há apenas os de repentes – uma mulher que também não pertencia reconheceu-a. As mulheres estrangeiras se reconhecem pelo olhar – e pelos cabelos mais ou menos ensebados de dois dias sem lavar, porque na noite não há tempo.
- Tem fogo?
- Eu sempre tenho fogo e cigarro.
Qual delas disse o quê não importa. Nem importam os cigarros e o diálogo. É que em alguma entrelinha daquele instante elas se diziam algo de necessário. Era algo como aqui dói e sei que em você também, por isso preciso de você porque você me faz conseguir alguma coisa que nem sei. Só me deixa sentar aqui e beber uma vodca contigo que é tão difícil enfrentar a noite, cê nem imagina. Juro que quando o sol nascer eu vou embora dormir bêbada e sozinha na minha cama fria e cruel – mas por enquanto só me deixa aqui que eu te deixo também.
E ao emprestar o isqueiro a outra dizia em entrelinha senta e fica porque preciso da sua solidão. Olha, só por esta noite, vamos pertencer, vamos nos pertencer? Eu te amo porque eu quero amar mas acho que não sei – então eu te amo. Me ama também porque amar é tão bonito.
Obviamente nenhuma delas disse nada daquilo – apenas conversaram como conversam as mulheres bêbadas que fingem não serem estrangeiras. Mas em algum lugar dos seus olhares elas se abraçaram. E enquanto uma pensava em perguntar algo que lera certa vez em um livro, algo como será amar dar ao outro a própria solidão?, a outra dizia em pensamento fecha os olhos e acalma. É tudo luz e sonho.
É tudo luz e sonho.
No mirante
18:53 postado por Thiago Terenzi
Desce do carro e vem aqui. Vista linda, né? grande pra cacete, dá pra ver a cidade toda. Adoro aqui, parece que a gente é Deus, percebe? O mundo rodando lá em baixo e a gente aqui, superior, alheio a tudo. Sente o vento no rosto, gata, e fecha os olhos.
Tá vendo aquela luz forte ali quase no fim do horizonte? ali é o estádio, é o Mineirão. Aquele pretume ali é a Pampulha. A cidade parece cheia de mistérios pras pessoas lá embaixo mas na verdade é só isso aqui. Simples. A gente é que complica tudo.
Tá vendo os prédios altos ali? lá é a boate que a gente tava. Parece que a cidade é grande mas na verdade cabe numa foto, vê? Na verdade essa cidade é toda assim, não sabe se é cidade grande ou pequena. Ainda não se decidiu. Às vezes acho tudo muito grande e às vezes ela me sufoca de tão pequenininha. Mas daqui de cima a gente parece ser maior que ela – e a gente é gata, a gente é. Daqui de cima a gente é o que quiser.
Não sei se você consegue enxergar mas perto daquele relógio do Itaú ali naquele prédio grandão, é por ali que eu moro. Viu? ah, deixa pra lá. Você nunca vai na minha casa mesmo, né? no máximo a gente vai se encontrar em algum boteco por aí. A cidade, mesmo sendo essa imensidão toda, é pequena. A gente vai se encontrar nos botecos da noite, gata, relaxa. A gente sempre encontra quem é da noite.
Muito louco tudo isso, né? ah, isso tudo. Olha pra você ver: neste momento eu estou inteiramente na sua mão mas a gente nunca mais vai se ver. No máximo iremos nos cumprimentar num dos botecos da noite e fazer um comentário com algum amigo do tipo “tá vendo ela ali? trepei há uns três meses”. E depois seguiremos perdidos. Mas neste exato momento eu preciso de você porque você me causa alguma coisa boa que eu nem sei explicar.
Olha, eu poderia me apaixonar por você agora neste exato momento mas não vou. Eu consigo controlar essas coisas, gata. Eu sei quando posso me apaixonar e sei evitar também. É que essa vista bonita deixa a gente meio bobo, meio apaixonado mesmo. Acontece com você também? Não, não se apaixona por mim que eu sou todo problemático. Não daria certo: eu fumo, você não. E tenho mil traumas e coisas do tipo. Além do mais você é legal e inteligente – e a gente um dia ia terminar e nos odiar mortalmente. Não, não quero mais ódio na vida, gata. Quero só amor.
Pode fumar um cigarro? sim, aqui é sempre deserto, sim. As pessoas costumam vir aqui pra trepar e fumar maconha mas eu curto ver a vista, sabe? Claro que vamos acabar trepando e se quiser eu tenho unzinho aqui já enrolado e tudo, mas eu sempre venho pra ver a cidade, pra ser a cidade. Sei que parece loucura mas se a gente abre os braços e fecha os olhos a gente acaba sendo a cidade, entende? E esta cidade é tão triste, fecha os olhos pra sentir. Ela parece com você: cheia de planos lindos mas com um milhão de traumas pra estragar tudo. Deixa de estragar tudo e seja só linda, gata. Como eu descobri seus traumas? eu sei ler olhares. Eu sou da vida, eu sou do mundo, esqueceu? Eu sei ler olhares e gestos. Se você fingir orgasmo eu vou saber, acredite. Eu moro na noite desde os treze, olhares tristes iguais ao seu eu vi aos montes.
Ah, você ainda nem sabe que é triste mas um dia descobre, pode acreditar. É inevitável, gata: você é da noite, como eu. Você não é mulher de lavar roupa e casar, você não é igual às outras. Você é da noite e ser da noite machuca às vezes – mas agora já era. Quem experimenta não volta. Quem tira a coleirinha uma vez não pode usar de novo.
Quer cigarro? daqui de cima a gente parece ser onipotente, não acha? A loucura na cidade lá em baixo e a gente aqui, superior. Quer saber? gostei de você. Não por ser você, mas acho que gostei de alguma coisa em mim gostando de você. Gosto do jeito com que você me faz ser eu. Vai ser uma pena nunca mais te ver. Mas enquanto a gente estiver trepando eu vou fechar os olhos e congelar o instante comigo. Às vezes faço isso: capturar os instantes.
Tô ficando meloso e repetitivo, né? mas é que a gente vai ficando velho e fica meloso e repetitivo mesmo. É inevitável. O céu tá ficando claro, vê? é o sol nascendo. É lindo, olha. É tão bonito que vou me permitir te amar só pra noite ser perfeita. Depois eu te esqueço porque não vale a pena tentar ser o que não somos. Amanhã a gente se esquece daí só vai sobrar uma lembrança gostosa de um dia perfeito. Vai ser legal.
Mas neste instante eu tô te amando, gata, de verdade. Me ama também só até o sol nascer por completo. Agora me abraça e sejamos nós dois.
Nós dois.
Mas há a vida
18:12 postado por Thiago Terenzi
E então, num dos de repentes de viver, ele enfim percebeu e sussurrou a si mesmo num sussurro baixinho de segredo revelado, “então isso é o fim?”. Casa vazia, escura; rostos congelados, silêncio gritante. Então isso é o fim?
A cama, deserticamente vazia, hermeticamente incompreensível – ah, a cama, banhada pelos raios do sol-de-ressaca – a cama denunciava o fim. A garagem vazia – insoluvelmente vazia. O dedo recém liberto ainda marcado pela ausência presente da aliança. Os copos ainda sujos de vinho barato sobre a bancada da cozinha. Os corpos ainda sujos pelo gozo cortante da madrugada. O beijo quase dado ainda compunha o ambiente irritantemente comum daquela manhã. Era um dia irritantemente amarelo. I-rri-tan-te-men-te.
- Então isso é o fim? – sussurrou novamente para sei-lá-quem ouvir.
E então abriu a geladeira: ainda havia metade daquele vinho barato travestido em vinho tinto seco de bom tom. Logo ele que nunca gostou de vinho. Bebia pelo bom tom. Trevestia-se pelo bom tom.
E então encheu o copo e bebeu: era álcool, foda-se. E então repetiu a si mesmo pois repetir fazia daquilo coisa palpável, “então isso é o fim?”. Porque só o palpável era engolível – e era preciso engolir os de repentes como se engolia aquele vinho barato de bom tom: em goles secos e gritantes.
Foi quando percebeu que nunca gostara de vinho – e odiava bons tons. Queria mesmo era beber vodca e escutar Raul Seixas e depois vomitar na privada do banheiro do apartamento e dormir com o hálito azedo de cigarros e enjôos. Mas bebia vinho e ouvia Caetano cercado de gente estranha e comentários inteligentes. E, se queriam saber – e provavelmente nem queriam –, ao contrário dela, ele não era comunista nem marxista nem qualquer outro ismo ideológico. Na verdade, estava era pouco se fodendo pra política ou qualquer besteira do gênero. Aquele papo de igualdade, alienação e direitos do proletariado era só vontade de trepar porque, antes dela, não trepava há três meses mas agora nem importava mais.
Depois veio a paixão. E os vinhos, os Caetanos, os Kafkas, os marxismos e todo o resto. Justo ele que só queria ver os jogos do Cruzeiro e comer McDonalds às quatro da manhã só porque amava McDonalds e qualquer outro lixo plastificado. Mas abriu a geladeira outra vez e teve nojo daquela comida natural. Se era então o fim, por que comida natural na geladeira? Por que diabos comida natural?
Mas então lembrou que a comida natural e os discos de Caetano e os vinhos de bom tom eram porque amava, apesar de. E lembrou que essa coisa gritante e serena que chamam de amor era maior que os Caetanos e os ismos ideológicos – e então o ódio se foi.
Depois de meses de trepadas sem sentido e cocaína barata foi que descobriu que o ódio é saída dos fracos. E então, - não antes de muitas lágrimas – aos poucos, num de repente longo e doído, a dor se foi.
E então sorriu de um sorriso sincero de quem enfim compreendia o fim. E compreendeu que compreender era aceitação serena. Era vasto, bonito. Sem dor.
E percebeu, enfim, que aquele era simplesmente: um fim. Simples, triste e bonito como todo o resto. Aceitou – sereno – e viveu os começos que ainda viriam.
A cama, deserticamente vazia, hermeticamente incompreensível – ah, a cama, banhada pelos raios do sol-de-ressaca – a cama denunciava o fim. A garagem vazia – insoluvelmente vazia. O dedo recém liberto ainda marcado pela ausência presente da aliança. Os copos ainda sujos de vinho barato sobre a bancada da cozinha. Os corpos ainda sujos pelo gozo cortante da madrugada. O beijo quase dado ainda compunha o ambiente irritantemente comum daquela manhã. Era um dia irritantemente amarelo. I-rri-tan-te-men-te.
- Então isso é o fim? – sussurrou novamente para sei-lá-quem ouvir.
E então abriu a geladeira: ainda havia metade daquele vinho barato travestido em vinho tinto seco de bom tom. Logo ele que nunca gostou de vinho. Bebia pelo bom tom. Trevestia-se pelo bom tom.
E então encheu o copo e bebeu: era álcool, foda-se. E então repetiu a si mesmo pois repetir fazia daquilo coisa palpável, “então isso é o fim?”. Porque só o palpável era engolível – e era preciso engolir os de repentes como se engolia aquele vinho barato de bom tom: em goles secos e gritantes.
Foi quando percebeu que nunca gostara de vinho – e odiava bons tons. Queria mesmo era beber vodca e escutar Raul Seixas e depois vomitar na privada do banheiro do apartamento e dormir com o hálito azedo de cigarros e enjôos. Mas bebia vinho e ouvia Caetano cercado de gente estranha e comentários inteligentes. E, se queriam saber – e provavelmente nem queriam –, ao contrário dela, ele não era comunista nem marxista nem qualquer outro ismo ideológico. Na verdade, estava era pouco se fodendo pra política ou qualquer besteira do gênero. Aquele papo de igualdade, alienação e direitos do proletariado era só vontade de trepar porque, antes dela, não trepava há três meses mas agora nem importava mais.
Depois veio a paixão. E os vinhos, os Caetanos, os Kafkas, os marxismos e todo o resto. Justo ele que só queria ver os jogos do Cruzeiro e comer McDonalds às quatro da manhã só porque amava McDonalds e qualquer outro lixo plastificado. Mas abriu a geladeira outra vez e teve nojo daquela comida natural. Se era então o fim, por que comida natural na geladeira? Por que diabos comida natural?
Mas então lembrou que a comida natural e os discos de Caetano e os vinhos de bom tom eram porque amava, apesar de. E lembrou que essa coisa gritante e serena que chamam de amor era maior que os Caetanos e os ismos ideológicos – e então o ódio se foi.
Depois de meses de trepadas sem sentido e cocaína barata foi que descobriu que o ódio é saída dos fracos. E então, - não antes de muitas lágrimas – aos poucos, num de repente longo e doído, a dor se foi.
E então sorriu de um sorriso sincero de quem enfim compreendia o fim. E compreendeu que compreender era aceitação serena. Era vasto, bonito. Sem dor.
E percebeu, enfim, que aquele era simplesmente: um fim. Simples, triste e bonito como todo o resto. Aceitou – sereno – e viveu os começos que ainda viriam.
Ensaio sobre o verdadeiro amor
00:32 postado por Thiago Terenzi
Pois em ti – ah, em ti não há ódio. É que em ti só há coisas bonitas, lembranças e saudades. Em ti há o verdadeiro da coisa – pois só o verdadeiro da coisa é incapaz de travestir-se em ódio. E em ti não há ódio, apesar de.
Tu, forte que és, não fez da dor um odiar-ao-outro, que é maneira fácil de fugir do choro. Tu não! – ah, tu, que aceitas a dor com carinho materno e diz-se a si mesmo palavras sem rancor; escuta: acalma-te e dá-me o corpo desprotegido à procura de afago. Dá-me que te protejo como mãe. Deitas sobre este colo e dorme, que a noite passa. A vida passa. O ódio passa. Apenas o verdadeiro permanece.
Deita e dorme que a felicidade logo vem.
Diálogo
23:03 postado por Thiago Terenzi
- Mãe, porque viver dói tanto?
- Onde é que está doendo?
- Em algum lugar acima do peito, abaixo do pescoço. Perto de onde fica a alegria.
- Que dor é essa, filho? desde quando você dói?
- Eu me dôo todo, sempre, mas é que dói baixinho. Faz silêncio que dá pra ouvir.
- Ninguém ouve a dor, filho. Se não quer ir pra aula, não vá. Não é certo inventar doença.
- E como faz pra desinventar? é que dói e eu não quero mais doença.
- Onde é essa dor?
- É lá dentro. Perto de onde fica a alegria. E aí eu não consigo ser alegre. Como faz pra ser alegre?
- Você é feliz, filho. Você é jovem, é criança, então é feliz.
- Mas, mãe...
- Quê?
- Felicidade dói?
- Escuta: não há dor nenhuma. Você é novo. Gente nova não é triste. Então não há motivos pra dor no peito.
- Não é no peito...
- Não importa. Não existe esse lugar que você falou. Alegria não tem lugar pra ser.
- Então a gente é alegre onde?
- Como onde?
- Em que lugar do corpo a gente é alegre? Acho que me dói é nesse lugar.
- Quer saber: quer remédio pra passar a dor? Tem Novalgina na cozinha.
- Mas e se a Novalgina me fizer também passar a alegria?
- Novalgina é pra dor, filho. Não é pra alegria.
- Mas é que minha alegria é tão miúda... que às vezes parece doer.
- Papai e mamãe te amam, filho. Então você é bem alegre, é feliz. Quem tem amor de pai e mãe é feliz. Simples.
- É que eu achava que felicidade era coisa grande. É que todo mundo quer, então eu pensava que era maior...
- Pois então é bom você deixar de querer demais do mundo. As coisas nunca são como parecem ser.
- Mas é que isso de ter de ser feliz me traz medo. E se eu nasci errado? acho que nasci faltando a felicidade. Por isso dói.
- Escuta pela última vez: você nasceu perfeito. O médico falou. Ele sabe das coisas.
- E essa dor fininha que parece não ter fim?
- Criança não tem dor fininha perto do peito! Isso é coisa de velho com veia entupida.
- Então acho que eu não sou mais criança.
- É sim! Olha, felicidade é isso que você está vendo. Não existem contos de fada. Não espere tanto do mundo. A gente tem que se conformar com um monte de coisas. Você é normal. O mundo é assim mesmo e a felicidade é isso aí. Nada é o que desejamos ser.
- Mas é que ser feliz me dói tanto...