É tudo luz e sonho

00:52 postado por Thiago Terenzi

É que a noite é onde os que não pertencem se encontram – vento frio e gélido sobre os corpos e os rostos assustados, como são os rostos e os corpos daqueles que nos são estrangeiros. E ela, estrangeira que era, não pertencia. E habitava a noite, como habitavam aquele lugar todos os seres errantes que vagavam imundos pela madrugada.

Ela, sentada às duas e vinte naquele bar-de-gente-imunda-e-estrangeira, ela: sorria. Não que houvesse qualquer instante de felicidade – embora anos mais tarde reconhecesse aquele momento como o de uma felicidade nostálgica e bonita – mas é que ali lhe era permitido o sorriso. E ela sorria apenas porque não lhe tiravam direito. É que na noite não havia direitos roubados. É tudo luz e sonho, ouviu numa música tempos atrás. E solidão, completou.

É tudo luz e sonho, cantarolou num sussurro baixinho e depois cantarolou de novo e de novo – é que aquilo era tudo o que a memória lhe permitia gravar. E repetiu incansavelmente aquela melodia turva e aconchegante porque repeti-la era maneira de se fazer do mundo de fato: luz e sonho. Apenas anos mais tarde, já velha e sozinha (como são as mulheres solteiras aos quarenta) é que descobriria a veracidade do que cantava. É tudo luz e sonho.

E de repente – porque na noite há apenas os de repentes – uma mulher que também não pertencia reconheceu-a. As mulheres estrangeiras se reconhecem pelo olhar – e pelos cabelos mais ou menos ensebados de dois dias sem lavar, porque na noite não há tempo.

- Tem fogo?

- Eu sempre tenho fogo e cigarro.

Qual delas disse o quê não importa. Nem importam os cigarros e o diálogo. É que em alguma entrelinha daquele instante elas se diziam algo de necessário. Era algo como aqui dói e sei que em você também, por isso preciso de você porque você me faz conseguir alguma coisa que nem sei. Só me deixa sentar aqui e beber uma vodca contigo que é tão difícil enfrentar a noite, cê nem imagina. Juro que quando o sol nascer eu vou embora dormir bêbada e sozinha na minha cama fria e cruel – mas por enquanto só me deixa aqui que eu te deixo também.

E ao emprestar o isqueiro a outra dizia em entrelinha senta e fica porque preciso da sua solidão. Olha, só por esta noite, vamos pertencer, vamos nos pertencer? Eu te amo porque eu quero amar mas acho que não sei – então eu te amo. Me ama também porque amar é tão bonito.

Obviamente nenhuma delas disse nada daquilo – apenas conversaram como conversam as mulheres bêbadas que fingem não serem estrangeiras. Mas em algum lugar dos seus olhares elas se abraçaram. E enquanto uma pensava em perguntar algo que lera certa vez em um livro, algo como será amar dar ao outro a própria solidão?, a outra dizia em pensamento fecha os olhos e acalma. É tudo luz e sonho.

É tudo luz e sonho.

4 pessoas disseram. E você?:

  1. Rafael Sandim disse...

    É difícil encarar a noite, é difícil aceitar até as coisas boas que ela traz.

  2. Nômade disse...

    Comecei a seguir o seu blog. Você fala de coisas que ouço demais quando atravesso aglomerações, mas com uma ótica diferente, mostrando que as pessoas ainda são pessoas quando não parecem mais pessoas, quando perdem elas mesmas, quando precisam encontrá-las ou encontrar algo para elas voltarem a ser o que eram. E gosto de ler coisas diferentes sobre pessoas comuns, coisas que fazem delas incomuns, como todos vieram aqui para ser.

  3. Aline disse...

    Adoro os teus textos. Bom final de semana! Beijos

  4. Luisa disse...

    Acho que já disse o quanto gosto de ler o que você escreve, né?
    É profundo e ao mesmo tempo tão real e bonito.
    É como se eu pudesse ver ou sentir suas palavras..ENFIM, já viajei demais

    haha
    beijos!!

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