Para seja-lá-qual-direção
13:30 postado por Thiago Terenzi
Vai que a dor de agora é coisa pouca, passa – vai passar. Levanta e te seja feliz, que eu desejo mil coisas bonitas. Desejo um sol bem bonito num jardim lindo com uma grama verde e um lago límpido, desses que em cidade grande não tem. Desejo você no jardim deitada sob a árvore ouvindo músicas de liberdade. Desejo que seja primavera e o clima esteja bom. Desejo um clima sempre bom.
Vai que eu te quero só coisas boas. É que o nosso jardim morreu e nos perdemos em meio à morte. E não há como nos acharmos. Não nos somos nós dois. E não há nada mais autodestrutivo que tentar sem fé. E não há fé.
Vai e te torna feliz de novo. E um dia, quem sabe, a gente finge que é dezembro e finge ser reveillon e eu pergunto se queres vir aqui, que aqui tem cerveja e tem vinho também e que daqui dá pra ver os fogos bem de perto da janela e que eu até faço uma comida e alugo um filme desses de comédia romântica em que em meio a tantos desencontros, no fim, eles terminam juntos. E então você responde que não sabe, que combinou com amigos um reveillon num clube qualquer, mas que também nem quer tanto sair com eles. E eu insisto e você topa e a gente se vê pela primeira vez com uma sensação estranhíssima de que já nos conhecemos antes e que temos uma vida inteira em comum. Mas deve ser apenas impressão nossa, eu digo. Eu sempre tenho a impressão de já conhecer as pessoas.
E então, quem sabe, nesse outro reveillon, os planetas se alinhem em seja-lá-que-lugar e os astros apontem para seja-lá-qual-direção e a gente seja feliz.
A ausência de
18:59 postado por Thiago Terenzi
E o dia nascera. Mesmo havendo a dor – e ela estava ali –, o sol surgia forte e quente e queimando a perna de varizes mofadas daquele homem. Era um homem velho murcho doído. Dormindo às três da tarde de uma terça-feira e o sol quente, sempre quente. Era um velho sem rumo. A barba mal feita, pêlos brancos aqui e ali, aquele cabelo seboso entre o liso e o anelado, aquele rosto amarrotado de quem dormiu a vida. De quem comeu a vida e não engoliu.
E o homem, perigosamente pálido, levantara da cama. O sol quente, sempre quente, queimava o quarto sempre àquele horário. Ele até queria comprar cortinas e espalhar pela casa e dizer adeus de vez ao sol, mas é que nunca saía do apartamento, quando saía não lembrava de comprar coisa alguma. Lembrou é de ascender o cigarro, Marlboro vermelho em jejum, puxou o ar com voracidade, engoliu a fumaça, gosto de nicotina na garganta, depois assoprou e viu aquele ar cinza impregnar o carpete já meio amarelado queimado nos cantos. Veio à boca aquele gosto seco de ressaca, aquela sensação de boca encardida. Fumou outro cigarro e ouviu Janis no vinil.
Depois preparou a bebida: duas pedras de gelo e uísque até a borda. O gelo era mais pelo barulho – o tin-tin-tin da pedra no copo tinha lá seu glamour. Então fechou os olhos e imitou a cantora fazendo em falsete a voz rouca gritando “come on and cry, cry baby, cry baby, cry baby”. Abaixou o volume para ver se o telefone tocava, pensou que um amigo poderia ligar, perguntar como estava e chamar pra encher a cara no fim de semana que teria festa na casa de não-sei-quem e que era só levar dez latas de cerveja que a vodca seria de graça – mas o telefone nunca tocava. Nunca. Então ascendeu outro cigarro, o maço estava acabando, restava uns dois ou três. E então ascendeu e fumou compulsivamente, naquele mesmo ritual voraz de engolir a fumaça. O gosto de ressaca ainda secava sua boca.
Em meio ao tédio, pensou que poderia ligar para uma amiga e falar “gata, vamos beber hoje? É que eu tô com saudades e preciso de amigos”. E então ele seria sincero e diria que nem gostava tanto assim dela, mas é que não restara muitos outros. “É que é todo mundo feliz e eu aqui com essa dor no peito, essa coisa atravessada na garganta. Daí lembrei de você que sempre foi meio doída e resolvi ligar”. E então ela toparia e bateria àquela porta às oito e levaria uma garrafa de vodca meia-boca para misturar na coca. Eles chorariam juntos e depois trepariam uma única vez porque no fundo nem havia tanto tesão assim. Depois dormiriam nus, cada um no seu canto, até dar três horas da tarde e o sol, maldito sol, expulsá-los do sono.
Mas então o homem lembrou que nem tinha mais o telefone dela, que perdera o celular numa noite qualquer, provavelmente bêbado. Lembrou que não tinha o telefone de ninguém. Franziu a testa tentando buscar na memória números ou e-mails mas foi em vão. Decidiu comer alguma coisa, estava com fome. Cheeseburguer de microondas, tudo artificial. Ligou o aparelho, colocou o hambúrguer, um minuto e vinte. Encheu um copo com coca porque odiava comer com álcool. E comeu.
Depois ainda bebeu o resto do uísque, fumou os últimos dois ou três cigarros e ouviu Janis depois Caetano depois Cazuza depois dormiu.
E o homem, perigosamente pálido, levantara da cama. O sol quente, sempre quente, queimava o quarto sempre àquele horário. Ele até queria comprar cortinas e espalhar pela casa e dizer adeus de vez ao sol, mas é que nunca saía do apartamento, quando saía não lembrava de comprar coisa alguma. Lembrou é de ascender o cigarro, Marlboro vermelho em jejum, puxou o ar com voracidade, engoliu a fumaça, gosto de nicotina na garganta, depois assoprou e viu aquele ar cinza impregnar o carpete já meio amarelado queimado nos cantos. Veio à boca aquele gosto seco de ressaca, aquela sensação de boca encardida. Fumou outro cigarro e ouviu Janis no vinil.
Depois preparou a bebida: duas pedras de gelo e uísque até a borda. O gelo era mais pelo barulho – o tin-tin-tin da pedra no copo tinha lá seu glamour. Então fechou os olhos e imitou a cantora fazendo em falsete a voz rouca gritando “come on and cry, cry baby, cry baby, cry baby”. Abaixou o volume para ver se o telefone tocava, pensou que um amigo poderia ligar, perguntar como estava e chamar pra encher a cara no fim de semana que teria festa na casa de não-sei-quem e que era só levar dez latas de cerveja que a vodca seria de graça – mas o telefone nunca tocava. Nunca. Então ascendeu outro cigarro, o maço estava acabando, restava uns dois ou três. E então ascendeu e fumou compulsivamente, naquele mesmo ritual voraz de engolir a fumaça. O gosto de ressaca ainda secava sua boca.
Em meio ao tédio, pensou que poderia ligar para uma amiga e falar “gata, vamos beber hoje? É que eu tô com saudades e preciso de amigos”. E então ele seria sincero e diria que nem gostava tanto assim dela, mas é que não restara muitos outros. “É que é todo mundo feliz e eu aqui com essa dor no peito, essa coisa atravessada na garganta. Daí lembrei de você que sempre foi meio doída e resolvi ligar”. E então ela toparia e bateria àquela porta às oito e levaria uma garrafa de vodca meia-boca para misturar na coca. Eles chorariam juntos e depois trepariam uma única vez porque no fundo nem havia tanto tesão assim. Depois dormiriam nus, cada um no seu canto, até dar três horas da tarde e o sol, maldito sol, expulsá-los do sono.
Mas então o homem lembrou que nem tinha mais o telefone dela, que perdera o celular numa noite qualquer, provavelmente bêbado. Lembrou que não tinha o telefone de ninguém. Franziu a testa tentando buscar na memória números ou e-mails mas foi em vão. Decidiu comer alguma coisa, estava com fome. Cheeseburguer de microondas, tudo artificial. Ligou o aparelho, colocou o hambúrguer, um minuto e vinte. Encheu um copo com coca porque odiava comer com álcool. E comeu.
Depois ainda bebeu o resto do uísque, fumou os últimos dois ou três cigarros e ouviu Janis depois Caetano depois Cazuza depois dormiu.
O Espelho ou A gente é assim mesmo ou Segura a minha mão, por favor ou Sobre algum Fim ou Me ensina alguma coisa ou Grita que eu me grito também ou ,
04:41 postado por Thiago Terenzi
A busca de
16:48 postado por Thiago Terenzi
E se algo ficou de tudo isso – por Deus, se algo ficou foi uma compreensão mutua que dividia com todas as mulheres. Ficou a compreensão daquela dor de não pertencer, de estar num não-lugar. Talvez isso a fizesse mulher. Talvez isso a fizesse mãe, porque das mães cobra-se o entendimento. E ela entendia. O que fazer de uma mulher cuja dor lhe é revelada? melhor seria a dor oculta...
E dele, do homem, ficara somente a dor... ele – justo ele – trouxera à garota o entendimento. É que ser mulher era assim mesmo: havia a dor do não-poder. Não lhe era permitido usar certas roupas nem a vaidade de mostrar-se em fotografias nem a dignidade de ter um trabalho. Até como portar-se num banheiro fora-lhe ensinado. E era preciso lutar para simplesmente ser. Era preciso esquecer – e provar o esquecimento – do passado, das noites de bebedeira, das trepadas imorais – mulher, para não escapulir do gênero, mulher, dessas de verdade, não bebe nem usa drogas nem dá no primeiro encontro nem trabalha nem se mostra em fotografias de Orkut nem usa roupas que lhe deixe a beleza à mostra nem vive se da vida não bastar-lhe o homem.
Então – então diz-me, por favor: como tornaria-se, a mulher, ela mesma? como tornar-te ti mesmo se o ti mesmo lhe é proibido? Como sentir-se em casa numa casa que nunca lhe pertenceu? A ela, como mulher, restou tentar caber-se aos moldes. Tentou – juro-te que tentou. Não coube.
Restou-lhe a dualidade feminina: a máscara ou a dor.
Fúria
13:45 postado por Thiago Terenzi
Mas não amava nada. Estava tudo errado, tudo. Tu-do. Confundia-se amor e egoísmo e esquecia-se do amor-próprio, que é necessário. Achava-se que amor era querer-o-outro-pra-si, mas não é, cara, não é. Esquecia-se que amor é muito mais querer-bem-ao-outro pura e simplesmente. Pensava-se que querer bastante e com urgência fosse amor. Estava tudo errado, cara. Media-se amor pela urgência, mas media-se a coisa errada. Amor é de graça, juro. É sereno, calmaria. O resto é egoísmo destrutivo, ciúme, possessividade.
– Amou coisa alguma – respondeu – você me foi apaixonado, gata, e é. Passa o cigarro, por favor, que quero a fumaça.
E fumou. Fumou. Fumou até que a fumaça o engolisse e bebeu seu copo de vodca com coca num só gole – bebida queimando a garganta naquele gosto insosso de vômito preso na boca. Encheu novamente, mais vodca que coca, naquela cor clarinha, quase transparente. Forte pra caralho. Bebeu tudo novamente e quis mais. Quis era pegar o carro às quatro e quinze da manhã e dirigir sem rumo, bêbado, e quem sabe parar numa blitz da Lei Seca, desacatar dois policiais, vomitar em outro, resistir à prisão e se foder.
E, no fim, iria ela num desses inferninhos sujos da cidade, em que as pessoas fazem sexo e cheiram pó enquanto toca rock de péssima qualidade e iria beijar a boca de outros caras sujos que freqüentam lugares sujos e bebem bebidas sujas. E beijaria sem vontade um desses caras, só por beijar, o que é ainda mais imundo e sujo e cruel. Estava tudo errado, cara. Tu-do.
– É amor porra nenhuma, que amor é altruísmo. Deixa eu te ensinar, gata: paixão que é urgente, quer-se a pessoa só pra você o tempo todo, prefere-se isso ou morrer. Paixão que é avassaladora, que não pensa nas conseqüências e é extremamente egoísta porque sufoca o outro pra te fazer bem, gata. Mas mesmo assim ela é necessária, é intensa. O problema é que paixão um dia acaba. Sobra o amor, então, que é a vontade serena de estar junto, que é aquela sensação de segurança quando vê o outro. Como se nada mais faltasse. É sereno, calmo, constrói ao invés de destruir. E disso, gata, será que tem alguma coisa aí?
E então ela chorou, imunda cheirando a cigarro e suor de outro homem. Chorou como uma criança, por horas e horas. E ele fumou outro cigarro e depois outro e bebeu a vodca. E percebeu que aquele choro lhe embrulhava o estômago. Estava tudo errado, cara, tudo. E desejou com extrema raiva estar numa boate e beber o mundo e trepar com três mulheres diferentes ao mesmo tempo, mas no segundo seguinte lembrou que isso era egoísmo, que era isso que matava o amor e que matava os dois. Lembrou que essa dor de agora não era o amor doendo – o amor doía, mas o que se sobrepunha era a raiva, que é egoísmo.
E então, cansado do mundo por hoje, dormiu.