O Leão e a Raposa

22:41 postado por Thiago Terenzi


Existe uma antiga lenda que conta que, há tempos – antes mesmo que o próprio tempo pudesse ser medido -, todos os animais viviam em completa igualdade de direitos, tal como, milênios depois, Marx idealizaria.
Eles logravam igualmente dos benefícios da floresta e, também, arcavam com as responsabilidades sociais exigidas. A igualdade era como um extinto coletivo. Leis não eram necessárias.
Era comum, por exemplo, encontrar todos os tipos de espécie compartilhando e, coletivamente, usufruindo da lagoa de águas límpidas, que ficava bem no centro da floresta: era uma lagoa enorme, cujas margens se perdiam no horizonte. E, de tão grande, era, em proporcional grandeza, bonita. Lindíssima. Era comum estar cercada por animais: Enquanto zebras desfrutavam da água potável de suas margens e aves ensaiavam, com majestosa perfeição, acrobacias aéreas por sobre as águas, hipopótamos banhavam-se e refrescavam-se na lagoa, livres que qualquer preocupação maior.
Quando nossa história começa, porém, a lagoa de águas límpidas estava deserta, exceto por dois animais que bebiam água em silêncio. Um parecia não reparar na presença do outro.
De um lado, o leão, figura imponente, dono de um andar gracioso e um olhar altivo, matava sua sede sem pressa, numa pose majestosa; Do outro, uma raposa, não tão imponente, à primeira vista, quanto o leão, mas dona de um semblante intelectualizado e, ao mesmo tempo, despreocupado, bebia água distraída.

- Não gosto que raposas bebam da mesma água que eu – murmurou o leão quebrando o silêncio.
- Desculpe, não entendi.
- Quando eu estiver bebendo água, raposa, eu quero ficar sozinho – disse novamente o leão, dessa vez num tom enérgico e provocativo.
- Creio que a lagoa seja grande o suficiente para nós dois – respondeu a raposa num sorriso plastificado.
- Você não entendeu. – O leão parou de beber a água e fixou seu olhar no animal ao lado – Não importa o tamanho da lagoa. Enquanto eu estiver bebendo água, ela é minha.
A raposa encarou o leão com um olhar blasé, e, então, respondeu: - Por mais que você deseje isso, leão tolo, a lagoa continua sendo de todos os animais.
- Quem disse? - Não precisa que digam, oras – respondeu a raposa confusa – desde que nascemos, sabemos disso: é o equilíbrio animal.
- Pois então, a partir de hoje, afirmo o contrário. – O leão, então, fitou a raposa com um olhar ameaçador – Afirmo que os leões têm mais direitos que as outras espécies.
A raposa assustou-se. Nunca ninguém havia sido tão insolente.
- Como é capaz de proferir tal heresia? Insolente!
- Escreva o que lhe digo, pequena raposa, - o leão parecia se divertir com o espanto do animal – a partir de hoje, os leões controlarão o reino animal.
- Suponho que seus devaneios naveguem por mares distantes da realidade – zombou a raposa – desde que o mundo é mundo, a igualdade de direitos é preservada, e assim tem dado certo. Assim será!
- Tudo tem um fim, pequena raposa, e a igualdade está ficando antiquada demais para os tempos modernos em que vivemos. Precisamos prosperar, precisamos evoluir.
- Temo que tenhamos conceitos diferentes de o que seria evoluir – respondeu a raposa num tom sério. – Além do mais, você é apenas um leão com sonhos de poder, nada mais que um ditador em potencial. Você pode dizer o que quiser, mas enquanto os outros animais do mundo desejarem a igualdade, assim será!

A raposa foi embora sem olhar para trás e o leão continuou pensativo nas margens da lagoa. Ele sabia que, realmente, enquanto não conseguisse o apoio dos outros animais, seu sonho de poder continuaria sendo apenas um sonho. Era difícil ter que admitir, mas, nesse ponto, a raposa tinha razão.
Sem, porém, deixar-se abater, o leão teve um plano: pediu ao macaco, porta-voz do mundo animal, que convocasse uma assembléia para crepúsculo do dia seguinte, nas margens daquela lagoa. A assembléia contaria com a presença de todos os animais. Assim foi feito.
No dia seguinte, tão logo o sol começou a ceder lugar às trevas, os animais começaram a chegar e acomodaram-se sobre o gramado próximo à lagoa. Eram tantos animais que era difícil imaginar que todos podiam habitar a mesma floresta. Era uma mistura de cores e tamanhos tão incríveis, que, se não fosse caótico, seria belo.
Quando todos já haviam se acomodado, o leão surgiu em um ponto em que poderia ser visto por todos – fez questão, também, de, por escárnio, ficar próximo à raposa – e, num sorriso radiante, saldou a todos:
- Meus queridos animais, muito obrigado por comparecerem a esta convocação. Peço sinceras desculpas por roubar um pouco de suas atenções, mas prometo que o que tenho a dizer é de extrema relevância.
Todos os animais continuaram em silêncio. A raposa, porém, demonstrava sinais de completa desaprovação.
- Todos sabem que a igualdade entre as espécies é cultuada desde os primórdios da vida animal – continuou o leão – É óbvio que temos que reconhecer que ela foi a responsável por garantir a sobrevivência de nossos ancestrais em tempos difíceis. Se não fosse o respeito mútuo pela vida, grande parte de nós não teríamos sobrevivido aos grandes terremotos e atividades vulcânicas que abalaram a Terra quando esta ainda estava em formação. Hoje, porém, felizmente, estamos em paz e a natureza nos presenteia com belos lagos, ao invés de nos reservar vulcões. Vos digo: A igualdade, importante em tempos remotos, já não é necessária nos dias de hoje. E digo mais: já está obsoleta!
Ouviram-se murmúrios por todos os lados. Todos os animais pareciam surpresos, e a raposa esboçou um sorriso. Quando o leão retomou a fala, porém, todos voltaram ao silêncio.
- Ora, meus queridos animais, por que o espanto? Nunca repararam que jamais fomos iguais? Nunca tiveram o desejo de mostrar suas habilidades, mas foram contidos por serem fadados à igualdade? Aposto que muitos de vocês têm habilidades incríveis. Muitos têm aptidão para a caça, mas são impedidos de caçar por não poderem se alimentar de outras espécies animais. Muitos desejam muito e têm que se contentar com quase nada. Muitos passam fome por ter que dividir o alimento com os outros, e se continuar assim, em pouco tempo, todos morrerão de fome – sim, somos muitos animais para pouca comida! Proponho, então, um conjunto de novas leis que irão reger o mundo animal de agora em diante, este conjunto será conhecido como as Leis da Natureza. Iremos trocar a igualdade pela felicidade!
E, então, todos os animais aplaudiram e berraram em uníssono. A felicidade tomou conta de todos. Apenas a raposa parecia assustada com a reação dos animais. Todos aplaudiram, embora poucos pareciam realmente querer ler o cartaz afixado sobre uma grande árvore com o seguinte escrito:

LEIS DA NATUREZA
1 – Todas os animais têm o direito de exercer os hábitos naturais de sua espécie, sejam alimentares ou comportamentais;
2 – Sobreviverá o mais forte, afim de que construamos um mundo de animais saudáveis e resistentes;
3 – Os leões supervisionarão o funcionamento do sistema, podendo intervir em quaisquer aspectos quando se fizer necessário sem quaisquer restrições.

A raposa, taciturna, parecia desolada em meio a tanta euforia. Apenas ela parecia prever o caos que o novo sistema implementaria. O leão, com ar de deboche, se aproximou da raposa e, em meio a risos, disse: - Raposa tola, você, que se faz de inteligente, parece não perceber a lógica dos animais. São todos hedonistas! Basta oferecer o pecado maquiado em alguma ideologia barata, que eles lhe chamarão de rei.

1 pessoas disseram. E você?:

  1. Thello disse...

    Realmente.. todo mundo quer fazer o que gosta mesmo com leis que digam o contr�rio...

    at� com os animais eh assim...

    muito boa..
    ;)

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