Cartas a ninguém
14:36 postado por Thiago Terenzi
Escrevo sem um interlocutor. Não entendo – mas pareceu-me, no momento em que iniciei as letras, pareceu-me fazer sentido. Talvez criar um personagem me seja necessário. O personagem é aquele a quem escrevo. Sinto-o apenas difuso, sem rosto, em cores acinzentadas. Mas sua presença basta. Quero de ti, meu personagem, apenas o pretexto à carta. Começo a depender de minhas próprias criações. Me preocupo.
É que tirei férias de mim. Dois dias. Deito sobre a cama e fico, apenas fico, entende? Não penso nem faço planos nem me sou. Nada. Existo, apenas, ou quase isso. E nesses momentos não dói nem é calor. É algo como a ausência da sensibilidade – mas que não é descrença. É superior: é não ter a necessidade de crer. É ausência infinita e indolor. É como se nesses momentos a existência retornasse ao ponto anterior. Existo? não sei.
Entendo sua preocupação. Sei do perigo em transitar em meio ao não-existir. Mas é que quando a dor transborda é preciso escolher, sabe? Então escolhi. E me são apenas dois dias. Tempo necessário para recuperar o caminho – recolher os cacos de dignidade que restam e recuperar o caminho. E no mais, aproveitei o tempo e li Clarice. Li muito. Transbordei. Reli “Um sopro de vida” em um único espasmo e, então, reli novamente trechos e trechos e, por fim, quando os olhos tornaram-se falhos, fechei-os e ouvi as versões em áudio de contos de Clarice. Eram narrados por Aracy Balabanian. Chocante.
A leitura de agora trouxe algo novo. Não tive medo dos olhos de Clarice – eu que, por Deus, sempre evitei encará-los de frente. Li Clarice Lispector altivo e, sob a mesma altivez, ela me leu. É que dessa vez era eu tão pesado quanto seu próprio peso. A dor de existir resignava-me tanto quanto sempre resignou Clarice. Éramos nós dividindo a mesma melancolia. Clarice era eu.
Tenho medo de jamais voltar a escrever. Juro-te de joelhos isto. Caio Fernando Abreu, me disseram, parou de ler Clarice por esse motivo. Entendo seu medo: não há o que ser dito. Clarice intimida todos nós que escrevemos, entende? Não há o que ser dito. Quis escrever um pouco a noitinha e não consegui. Se escrevesse o que minha alma implorava, seria a íntegra de “A procura de uma dignidade”. Não escrevi.
Falando em Caio Fernando Abreu, tenho lido uma tese de doutorado sobre sua obra. Ele é outro que sempre me pareceu triste. Parece ser um daqueles que foi à vida, arriscou-se e, no fim, rendeu-se à dor. Clarice, ao que me parece, nasceu rendida. Eu tento não me render – esta negação da existência através da qual me sou nos últimos dois dias, embora pareça o contrário, é tentativa de não me render, acredite. Será que, no fim, o caminho é mesmo desistir? luto contra!, sabe?
No fim, o caminho é tentar manter a sanidade. Tento fazer minhas coisinhas, me nortear. Os mais sensíveis, como a gente, temos que estar sempre atentos: se perdermos o caminho, nunca mais encontramos. Temos que manter um pé no racional. Se não, se o copo derramar e a gente não segurar, aí não tem mais jeito. Aí a gente acaba como tantos que viviam por viver, sem sorrisos ou lágrimas, sem sentir absolutamente nada. E é caminho sem volta. Os mais sensíveis – aqueles sobre os quais a dor da vida pesa mais forte – são como os loucos: o que nos separa da internação é exatamente a tênue linha de equilíbrio estrangeiro que preservamos.
É por isso que preciso fugir de mim nesses dias. Por isso fiz minhas férias de apenas dois dias: preciso reencontrar o caminho. Estive próximo – e, juro, ainda estou – de perder o controle. E, se for, não há volta.
Viver é perigoso.
Desejo-te sorte.
15 de setembro de 2009 às 22:02
Doces são as armadilhas do consciente, este eterno não-compreender, esta ausência de ideias claras quando mais precisamos delas; este borrão inveterado que somos todos nós.
16 de setembro de 2009 às 21:52
Thiago. Seu escrito é fantástico e preciso no momento atuar pausa de reflexão sobre tudo que meus olhos sobrevoaram. Aqui há muita profundidade do tal ilógico letral que me remete recorrer a releitura. São frases tão bem construídas vindas de um jovem de apenas 19 anos, fico por imagina-te quando chegares aos meus 28 anos, nossa que bela figura de linguagem.
Beijos
Priscila Cáliga
21 de setembro de 2009 às 14:15
Comentários demasiado elaborados aqui. Humildemente reconheço: foi o texto que mais gostei. Você se supera e, se minha inveja me permitir, esperarei que vc continue SEMPRE a escrever...
27 de setembro de 2009 às 01:33
é de não parar sua escrita!
27 de setembro de 2009 às 22:25
e agora que foi? há volta?
28 de setembro de 2009 às 01:57
Eu não sumi. É uma promessa nunca sumir. Ao menos das letras (suas e minhas) não quero e nem posso fugir. Tudo muito lindo aqui, como sempre. A flor da pele, sabe?, que é exatamente como as coisas sensíveis precisam ser. Fico feliz vendo que C.F.A. faz agora parte inseparável de você, acho que agora você entende o quando ele mudou minha vida. Do mais, continue escrevendo e expelindo e transbordando e excedendo tudo que quer (e precisa) sair e ser dito.
29 de setembro de 2009 às 07:56
Oi Thiago,
Fico CHOCADA com sua escrita moço, você é tão jovem e tão igualmente SAGAZ que me encanta sua escrita. Seus elementos criativos somados a linhagem adequada e com a pitada do que a literatura já fez por nós, faz de texto assim um alento para meu dia, e isso tem sido RARO.
Ainda não tive forças para voltar a escrever, e continuo cada vez mais me perdendo de mim, mas por aqui continuarei passando na tentativa de não deixar o que de bom meu eu encontrou no mundo.
Beijos de sua admiradora.
LC
8 de janeiro de 2010 às 12:50
Thiago seus textos são incríveis, sinto-me pequenina quando os leio.