A arte
04:02 postado por Thiago Terenzi
Da janela semi-aberta, as primeiras gotas de sol começaram a surgir anunciando a quem quisesse ver – e apenas ela via – que a noite anterior já era dia seguinte. E era dia bonito, o que nascia. Não havia nuvens, e embora as trevas ainda dominassem meio céu, o azul surgia aos poucos em cores de alívio.
O quarto, porém, era noite em traje completo: luzes acesas num amarelo amargo, cheiro de cigarro, Augusto dos Anjos aberto num poema antigo e mofado, bebida pela metade – e ela: olhos semi-cerrados fitando sabe-se lá o quê – olhos inchados de quem não dormia há tempos, os dela. Misteriosos, claro, como se fossem fieis de um segredo doído – como se soubessem a verdade do mundo. Seu olhar perdido parecia acostumado à luz e às trevas. Era estranho – traz medo, confesso. Parecia entender algo que ninguém mais entendia. Uma verdade oculta. E nem por isso demonstrava qualquer brilho maior.
Sobre o colo, o teclado: a mulher digitava compulsivamente. Digitava como se respirasse as letras, como se a palavra fosse uma maneira de manter-se viva. E era. Enquanto escrevia, tinha certeza que suportava. E suportar já era estar viva. Bastava.
E aquilo que a mulher fazia em seu momento mais necessário – aquilo era chamado de arte. Ela, porém, não se enganava: não há nobreza ou beleza na arte. A arte é inquieta e fria. É de uma luz sangrada e triste. E o artista é um ser incompleto. O artista apenas suporta. Ela suportava.
E escrevia como quem transborda. E enquanto escrevia, apenas no instante em que tocava a tecla com o dedo – apenas nesse instante, era feliz. E no instante da escrita, ela não sentia o aperto queimando-lhe o peito. E respirava-se de um ar que lhe era legítimo. E fechava os olhos e sentia-se viva de uma vida que era aos poucos – mas que, mesmo assim, era-lhe a vida.
Nos outros instantes – nos que deixava de lado a escrita para fumar, por exemplo – nos outros instantes, ela entregava-se ao mundo. E cedia por compreender que qualquer resistência seria dor inexorável. E então deixava a dor doer num olhar conformado. E resistia serena fingindo estar viva.
Naquele instante, porém, em que o sol nascia – naquele instante ela abandonou a escrita. E antes que a dor pudesse voltar a matá-la, sussurrou ao vento juntando-se de todo o amor que lhe restava:
- Quero ser-me um dia – e numa voz medrosa, como a de uma criança implorando abraço, finalizou – vamos ser-me juntos?
6 de março de 2009 às 15:04
Thiago, meu irmão em letras e nome. Quão profundo esse texto!
Não me encontro boquiaberto porque sempre mergulho em suas águas escritas. E como é bom ‘o assim fazer’.
Amigo, estive essa semana, conversando com uma amiga e, lemos juntos, embora ‘internéticamente’ o seu texto “Psicografia”. É de uma abrangência em minha vida esse escrito, e eu agradeço a você por tê-lo documentado.
E esse texto - A Arte - levou-me a ele novamente. Levou-me a mim. Pois, quero sempre, dia a dia, ser-me –SERME.
Terenzi, sua escrita inquietou-me numa mistura prazerosa e dolorida de reflexão. O trecho, em especial:
“Era estranho – traz medo, confesso. Parecia entender algo que ninguém mais entendia. Uma verdade oculta. E nem por isso demonstrava qualquer brilho maior.”
Isso. É exatamente isso a tradução de um sentimento meu, in-curado. Talvez, curado, mas não apresentando um brilho diferente da dor. Porque o que dói, brilha - de forma inconsistente, mas brilha. E essa hipótese de contradição emana águas em mim, que não sei ao certo se as bebo ou se as recuso. É estranho. Como se fosse um poço em profundidade em meio ao raso – e nem por isso deixa de ser denso.
Um abraço, do seu amigo que sempre escreve “nada com nada”.
9 de março de 2009 às 19:34
Esse texto está saborosíssimo! O devorei.
E sim, vamos. (A respeito da sua pergunta final)
Um beijo.
10 de março de 2009 às 15:52
Thiago,
deixei uma brincadeirinha pra vc no meu blog,se estiver na vibe de brincar...
Bj
10 de março de 2009 às 15:53
ops nos Devaneios
10 de março de 2009 às 20:08 Este comentário foi removido por um administrador do blog.
10 de março de 2009 às 20:12
http://br.myspace.com/
e eu ganhei a aposta, olha no canto superior direito se nao eh da google...
11 de março de 2009 às 13:20
Thiago,
seu blog agora é uma casinha para mim... vou me refugiar sempre que estiver com vontade de ler qualidade. Menino! Que achado. Vou colocar seu blog no meu e não se sinta obrigado a fazer o mesmo. Amei suas letras caóticas!
Beijos...
11 de março de 2009 às 13:21
PS: Fã de Nietzche? Teremos muito o que conversar....
15 de março de 2009 às 12:11
Que coisa mais linda o final do texto.
Essa pergunta no ar com gosto de conhecer a resposta já.
Muito bom.
17 de março de 2009 às 09:11
Se agora já escreve assim, imagino em 10 anos!
19 de março de 2009 às 21:42
Nessas horas acabo sempre encostado à parede, fumo meu cigarro e engasgo com palavras que não saem.
adorei guri.
26 de março de 2009 às 10:02 Este comentário foi removido pelo autor.
26 de março de 2009 às 10:02
Farei visitas constantes, Thiago. =)
29 de março de 2009 às 13:42
Não some não.
30 de março de 2009 às 11:20
de férias das letrinhas?
Volte
2 de abril de 2009 às 14:50
Boa tarde, Terenzi!
Passando por aqui para te incentivar a postar - risos.
Estou no aguardo de novas águas, fontes torrenciais de palavras, jorrando de ti.
Um abraço, amigo.
Shalom.
24 de junho de 2009 às 19:06
Lindo! Achei a mulher tão parecida com a Clarice que quase a vi, com seu olohar cansado de quem sabe tudo e não revela. Sua máquina de escrever ao colo e a cabeça fervendo de ideias que, ela sabia, jamais caberiam no papel. O cinzeiro cheio de tocos de cigarros revela a noite de trabalho(?). Ela está exausta, ela está encarando o dia, elá está levantando as sobrancelhas e se despedindo de si pra receber o dia. Quase pude ver Clarice Lispector nessas linhas.
"- Quero ser-me um dia – e numa voz medrosa, como a de uma criança implorando abraço, finalizou – vamos ser-me juntos? " Amei.