Textos do passado [2]: "O Velho e o Espelho"

15:36 postado por Thiago Terenzi


Continuando a série de postar textos escritos por um eu mais antigo, avanço um ano e publico, agora, um texto de 2005.
Curiosamente, este texto é um dos poucos que eu consigo rotular: parece um conto - ou, ao menos, tem personagens. Dois.
Não me reconheço nestes dois textos já postados. Não me reconheci aos 14 anos e nem agora aos 15. Mas acho, sobretudo, que nem me reconheço ainda.









O Velho e o Espelho

Desde muito, a luz do sol não iluminava com a mesma intensidade aquele pequeno quarto. O homem lembrava da época em que a luz era constante. Fora antes dos prédios, ele sabia. Com os prédios, vieram os cinzas e a escuridão, e o sol nunca mais bateu à sua janela.

Sem claridade, era difícil reconhecer, no quarto, traços de habitação. Parecia abandonado e só: tinha gosto de tristeza. Era vazio. Uma cama e um cobertor, apenas, identificavam o ambiente como sendo um quarto. Tinha, também, um espelho. Velho e trincado, pouco refletia. O homem evitava, sabe-se lá o porquê, encara-lo nos olhos, mas naquela tarde, em especial, ele o fez.

Era difícil enxergar algo. Teve, o homem, que cerrar os olhos e olhar atentamente. Viu o espelho, olhou-o nos olhos, e nos olhos, viu ele mesmo. Sua própria imagem encarando-o de forma vulgar. Era ele nos olhos do espelho, mas era um ele tão incomum...

Fitando a si mesmo, perplexo, o homem entendeu, como que se tivessem injetado a verdade em suas veias, a fugacidade da vida. Percebeu, então, que a vida, efêmera que era, o havia atropelado. Todos os anos e dias de sua vida, cada segundo que respirou, nada mais era que o prefácio de sua morte. Esta, bela e cruel, era análoga à vida, que nada mais servia senão à preparação para o nada eterno – este sim, o ator principal.

Mesmo com a pouca luz, o homem se viu sem vida. Não se lembrava tão velho. Na última vez que se viu, não existiam as rugas nem os cabelos brancos. Enxergou, enfim, que seus traços de velhice não o tornavam sábio ou experiente, e nem tinham qualquer significação nobre. Eram apenas a prova de sua fraqueza mortal perante o tempo. Era a derrota estampada em sua face. Em sua própria face.

Tentou chorar, mas o choro havia secado. Parecia não existirem mais lágrimas, uma vez que nunca as havia usado. Percebeu que deveria ter chorado durante vários momentos de sua vida, e lembrou-se de tantas outras coisas que deveria ter feito. Sabia, ele, da necessidade de olhar-se no passado e lamentar-se pelo que nunca fez, uma vez que já não existia mais futuro, mas também sabia que mudar o passado não faria do seu futuro algo diferente. Não importavam as escolhas, no final, os caminhos sempre se juntavam num mesmo destino. Enfim havia entendido que tentar viver uma vida só sua era apenas uma utopia.

O homem, que nunca havia acreditado no destino, pôde, então, enfim nele crer. Mas não acreditava no destino religioso, escrito por Deus. Era um destino mais negro e simples. Talvez, pensava ele, fosse negro exatamente por ser simples: nascemos para morrer. Simples e nada nobre. Doía a alma saber disso, mas o espelho havia dito e o homem não poderia mais viver sem encarar a verdade.

O sol se pôs e a pouca luz que iluminava o quarto se apagou. O homem deixou de olhar o espelho e adormeceu em sua cama. Viveu o resto de sua vida sem qualquer brilho maior e, então, morreu.

Thiago Rezende (um eu que já não existe mais), 29/07/2005

3 pessoas disseram. E você?:

  1. Ligia Carrasco disse...

    "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara", disse um dia Saramago, tão sábio.
    E reparar é não tão sempre bom.

  2. Thiago Cavalcante disse...

    Bom dia, Thiago.

    Seu texto possui uma subjetividade arrebatadora. E gosto disso. Assim , posso interpretá-lo por um lado e nunca conseguirei decifrá-lo perfeitamente. Isso me causa contentamento.

    ...


    Meu espelho me condena. Reflete a natureza de um cara cansado e "cansado". Com imagem inversa. Sem ver-me na minha autenticidade. Revela algo que não sou. Talvez eu tenha sido, algum dia.

    ...

    P.S.: Não gosto de ver-me no espelho calvo. E ele revela que já estou com “entradas” na fronte. rs

  3. Anônimo disse...

    Thiago,
    se nem o espelho salvou este homem de si mesmo, o que mais poderia salvá-lo?
    bjos

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