London, London
20:09 postado por Thiago Terenzi
Dizem que por volta de mil seiscentos e sabe-se-lá-quanto, numa Londres devastada pela Peste Negra, as pessoas assustadas fugiam de suas casas e firmavam acampamento no Hyde Park. Era como se ali – dizem, sempre dizem –, em meio às árvores, lagos e todo aquele bucolismo estranho a uma metrópole, era como se ali fosse uma espécie de porto-seguro, seguro até mesmo da peste, da morte, do medo. Não sei se é verdade, não sei de muitas coisas. Mas sempre que vou a Londres, como agora, como hoje, sempre pela manhã, sempre de manhazinha, sempre caminhando pela Bayswater Street, leve frio londrino, brisa suave, cappuccino quente entre os dedos, aproveito para sentar em algum banco livre próximo a alguma árvore sem folhas, sempre sem folhas, no Hyde Park.
Sempre próximo ao lago, sempre sozinho. Sempre fecho os olhos e me imagino protegido, protegido da peste, da morte, do medo. Nunca fui de acreditar em impossíveis, nunca acreditei em fadas, duendes, deuses e isso-que-eles-chamam-de-plenitude – mas é que talvez por ser Londres ou talvez pelo clima mágico ou quem sabe por eu estar ficando meio velho e precisando de algumas crenças, mas é que enquanto fecho os olhos, leve frio arrepiando os pelos, leve brisa bagunçando meus cabelos cada vez mais ralos cada dia um pouco mais ralos, é que quando fecho os olhos me sinto realmente protegido. De uma proteção tão frágil quanto a que sentiam séculos antes aqueles pobres londrinos fugidos da peste. Como se aquela leve magia do parque pudesse salvá-los. Como se aquele frágil instante de plenitude-distraída pudesse me salvar.
Dia desses andando sem destino pelo parque, como sempre tenho andado desde nem-me-lembro-quando, dia desses perdido como me é de costume, ando me perdendo tanto e tanto que nem sei ao certo o que fazer de mim – dia desses pelo parque, numa das margens do Serpentine Lake, encontrei uma imagem esculpida em pedra, linda, imponente, cinza, grande, muito grande: um pássaro de asas fechadas, um pássaro lindíssimo, não me lembro a espécie, não sei de muitas coisas mas sabia que era lindo e lindo de um encanto mágico. Nunca me encantei por animais, mas aquela figura altiva, um pássaro enorme de asas corpulentas protegendo todo o corpo, olhar penetrante e bico largo num estranho sinal de reverência, reverência a mim, justo a mim, eu que sou tão menor que qualquer pássaro, tão frágil, tão pequeno, tão ridiculamente frágil e pequeno – imóvel, sempre imóvel, estudei a escultura enquanto ela, também imóvel, parecia me fitar.
Após segundos de completo choque e êxtase contido, reparei ainda distraído, como ando desde nem-me-lembro-quando, ando tão distraído tão sem-motivo para qualquer atenção, reparei numa placa de ferro abaixo dos pés imponentes daquele pássaro. Havia algo escrito. Meu inglês péssimo sempre péssimo, nunca soube de muitas coisas, nunca soube de muitas palavras além do mínimo necessário para sobreviver em Londres, meu inglês jamais me deixou traduzir com exatidão o que havia ali – talvez o escrito contasse a estória daquela ave estranhamente corpulenta, talvez revelasse a identidade do escultor, algum famoso artista plástico londrino, vai saber, as palavras eram difíceis, vocabulário complicado e há tempos eu já não me dedicava mais aos estudos, há tempos eu já não me dedicava mais a quase nada -, mas, em meio a frases desconexas, uma palavra me saltou aos olhos: wish, que é desejo. E eu desejo tanto, nem sei o quê, mas desejo. Às vezes fecho os olhos e repito três vezes algum pedido, algum desejo, repito ao deus ou ao que chamam de deus, não sei ao certo, não sei a quem e nem sei se realmente acredito, nunca fui de acreditar em muitas coisas, mas talvez: o desejo baste. Wish, wish, wish repito comigo, sempre três vezes, só para ouvir a bonito som da palavra. E então faço um pedido com alguma esperança que nunca tive, nunca fui de ter fé nunca fui de ter muitas coisas, e então peço um desejo, qualquer coisa, qualquer coisa que se possa desejar.
Na placa, presumi, estava escrito ao final algo como deposite aqui uma moeda e faça um desejo. Havia um espaço para depositar dinheiro, uma caixa de bronze, cerâmica ou de alguma outra pedra, nunca fui bom para identificar tipos e pedras e todo o resto, e a caixa, pensei, parecia com alguns dos meus porquinhos que sempre tive na infância, esses porquinhos-cofre em que a gente deposita algum dinheiro, tive saudades dessa época e tive saudades dos meus porquinhos.
Peguei uma moeda, a maior que eu tinha, nunca fui de ter muito dinheiro nunca fui de ter muitas coisas, peguei uma moeda de dois pounds, segurei firme, estava gelada, queimava a mão, as moedas são sempre muito frias no inverno, pensei, e então me veio em mente que talvez eu também estivesse sempre muito frio neste meu inverno que já durava já-nem-lembro-quanto-tempo, não me lembro de muitas coisas. E então eu pensei em quantas moedas existiam abaixo daquele Pássaro Imponente, pensei em quantos desejos haviam sido desejados e em quantos pedidos desesperados haviam sido pedidos desesperadamente em frente ao Pássaro, aquele Pássaro. Quantas moedas haveriam ali? quantas nacionalidades? quantas estórias parecidas? quantas épocas? quantos desejos? quantos desejos? Será que teriam sido atendidos?
Com mãos firmes, segurei a moeda. Quantos reais valeriam dois pounds? não fazia ideia, nunca fui bom com dinheiro, tentei convertei em euros depois reais, desisti. Segurei ainda mais firme a moeda e desejei, desejei alguma coisa, I wished something, wish, wish, wish, digo agora em inglês para sentir o som da palavra. Nunca fui de crer, nunca fui de ter fé – mas talvez fosse o Pássaro ou talvez o clima mágico que me envolvia ou talvez por ser Londres e estar em Londres talvez fosse tão surreal que qualquer fé fosse possível. Talvez fosse, me veio agora, por eu estar querendo tanto e tanto e tanto que aquilo tudo fosse real – ah, e eu queria tanto que talvez por querer: talvez fosse real. Ela acreditava em anjos e, porque acreditava, eles existiam, lembrei de Clarice. E então, com um desejo tão forte e tão sincero e tão real de quem deseja e deseja mais que tudo – e então depositei a moeda, dois pounds, de olhos fechados. Queria tanto, sabe? e quando se quer muito, quando se quer de verdade, dizem, a coisa acontece. Quando se quer muito, tudo deveria acontecer. Acontecerá, pensei comigo mesmo. Assim será, assim será, assim será, repeti três vezes, em silêncio, só para o deus ouvir. Ou o Pássaro, quem sabe.
O Estrangeiro
16:34 postado por Thiago Terenzi
Ando pensando agora neste trem frio e silencioso, neste trem estrangeiro que liga nem sei quais cidades, nem importa, nunca importou, prefiro mesmo o caminho ao próprio destino. Ando pensando que quanto mais tentamos e buscamos desesperadamente ficar alheios, quanto mais nos perdemos de nós mesmos em busca de alguma outra Realidade Menos Dolorida – ando pensando que quanto mais fugimos - e a gente sempre foge –, mais impossível se torna a batalha. Se tivesse caneta, e nunca tenho, nunca levo muitas coisas, nunca levo nada além de algumas mudas de roupas neutras de qualquer lembrança Sua – se tivesse caneta, anotaria, tão grandioso me pareceu o pensamento.
Ando pensando também que este clima estranho e fechado e soturno e este frio cortante nos convidam à lembrança. E a lembrança é sempre perigosa. Este balanço suave e o barulho da leve camada de neve batendo sobre o vidro, o vento avançando sob as frestas num som agudo típico deste algum lugar do Leste Europeu (ou será França? Inglaterra? Irlanda? talvez algum lugar da Holanda visto o sotaque carregado murmurado entre as finas paredes do trem). Mas ando pensando que este clima propício nos leva à lembrança. Nos leva a querer exatamente o que buscávamos esquecer. Há alguma melancolia nestas terras estranhas que nos convida à catarse. Se tivesse caneta, penso eu novamente, escreveria. Mas nunca tive muito. Nunca fui de possuir, sempre preferi o feeling, o tactus da coisa.
Ando pensando sobretudo – e talvez influenciado pelo clima cinza e estranho deste sabe-se-lá-que-lugar, e ao contrario de toda a fuga planejada nos últimos tempos, New York Londres Berlim Oslo Amsterdam Budapeste e depois nem importava mais qual cidade qual país qual língua, importava apenas ir e ir e ir e buscar alguma coisa que ainda não sei mas saberei, tenho fé, eu acho – ando pensando em te ligar. Ontem ou anteontem, não me lembro, em alguma dessas cidades de céu sempre cinza, sempre noite, sempre triste, vi um senhor, talvez latino, talvez árabe vendendo cartão telefônico internacional. Sabe-se lá o porquê, nunca tenho para quem ligar, não sobraram muitas pessoas nunca tive muitas pessoas, peguei a carteira e procurei restos de euro ou pound, nem me lembro mais, nunca me lembro – e comprei. Ando desde então pensando em Te ligar.
E entre as estações e entre as cidades sempre escuras sempre frias sempre lindas sempre irritantemente lindas, e nos trens ou nos aviões ou nos ônibus, ando ensaiando alguma ligação. Ando ensaiando tantas coisas, acredite. Embora talvez não se valha mais a pena acreditar, já não importa mais ter fé. Ando ensaiando talvez Te dizer algo como. Já não sei mais, acho que não quero, a lembrança é difícil, as cicatrizes estão sempre meio abertas, meio doloridas, meio vivas. Talvez tenhamos destruído todas as possibilidades cedo demais, talvez tenhamos dito cedo demais aquilo que não se deve dizer. Porque éramos jovens, éramos crianças e havia muito para ser vivido, para ser experimentado, sempre há muito para se experimentar quando se é jovem. Eliminamos cedo demais todas as possibilidades – porque há palavras que não podem ser ditas, depois voltar atrás é tão difícil, tão difícil, Você sabe. Re-construir, aprendi com o tempo e com os bares e com o frio, é tão mais difícil que construir, sabe?
Talvez eu pudesse Te dizer tudo isso, talvez eu devesse, antes de mais nada, me dizer. Mas acho que esse frio e esses lugares-sem-identidade e essa neve gélida e essas noites eternas sempre noite sempre noite – acho que não sei mais dizer. Pensei em escrever, sempre fui bom com as letras, mas já não sei em que língua ainda sei sentir. Deve haver um porto, li um dia em algum livro talvez brasileiro irlandês inglês alemão espanhol ou português. Deve haver, repeti. Haverá.