A Liberdade - por Thiago Terenzi
01:27 postado por Thiago Terenzi
E então adormeceu e, pela primeira vez, foi-se ela mesma: olhos fechados sob uma leveza transcendental de criança inocente e corpo em pele alva. O rosto sereno era de sinceridade aspergida – era de um viva exclamado por estar-se nua de alma.
Ela dormia em sono profundo – pois só assim era possível ser sincera. Se os olhos se abrissem, perder-se-ia a inocência. É que inocência sincera dispensa máscaras. E estar-se viva já era mascarar-se em trajes plásticos. Travestida, ela abria mão da sinceridade para viver.
Mas agora, de olhos fechados, ela não vivia – dormia. Abstinha-se do papel de ser mulher para apenas ser; livrava-se da obrigação de perdoar para perdoar-se. E estava próxima de Deus por aproximar-se de si mesma. Era autônoma e tão livre que a liberdade lhe parecia pouco.
De pura sinceridade, amou o mundo de um amor inédito – não de amor cristão, que soa como dever, mas de amor gratuito. E recebeu em troca o conforto do travesseiro roçando-lhe o rosto – e bastou.
Sorriu e foi, enfim, feliz – e a felicidade não era aquela contrária à tristeza. Era palavra sem antônimo. Era um feliz que existia não para opor-se ao triste. Apenas existia. Estava lá – e ela nem queria saber os porquês.
Apenas nós, os incompletos, buscamos respostas – ela não. Em seu sono profundo, ela apenas acreditava. E por acreditar, não havia perguntas (nem ao menos havia pontos finais ou exclamações). Havia o signo – livre de significado, significante e significação. O signo apenas estava lá e ela o respeitava – e o amava como parte de sua natureza.
Plena de si, pensou estar morta – a tênue linha que separa vazio de plenitude é tão insignificante que arrisco-me a dizer que são sinônimos. Mas ela, esperta, muniu-se da certeza de estar viva – e, então, estava. Antes de acordar, porém, abraçou o travesseiro num abraço a si própria, bradando um “eu te amo” tão sincero que nunca chegou a efetivamente dizê-lo.
Amando-se em sua própria inocência, por fim, acordou. E então travestiu-se em suas máscaras habituais e jamais voltou a ser-se si mesma.
Deus - por Thiago Terenzi
15:55 postado por Thiago Terenzi
E então ela acordou de um sono necessário sob o único raio de sol que iluminava seus olhos. Levantou-se e banhou-se de uma preguiça inocente e molhou seu rosto: pele alva, traços duros de um sabe-se-lá-o-quê cativante, que nem consigo explicar.
Sobre o espelho, fitou seus próprios olhos e descobriu-se.
Fingia-se de um fingimento artificial que herdara numa rua qualquer – mas, desde então, soube-se num saber particular e bastou. Sorriu. Rendeu-se por fim a si mesma e iluminou-se de uma alegria imperceptível – porém intensa.
É que descobrir-se em si mesma era torna-se estrangeira – e ela tinha medo. Era ir além de um além não navegado e era perigoso: ilimitando-se, talvez, poderia parecer limitada aos olhos outros. E ela fora além de si ao olhar-se no espelho – além de seus próprios olhos.
Pois seus olhos negros de ressaca pareciam esconder o que há de mais humano. Como se o “torna-te quem tu és” da alma se travestisse em felicidade cristã. Como se o que há de melhor fosse ocultado pelos certos plastificados.
Era mesquinho os olhos – de cigana obliqua e dissimulada. Eram olhos de Capitu. Pedaços de uma moral recortada que cobriam a retina. Não enxergava para não ser enxergada.
Ela, porém, fora além da retina e não havia mais caminho a seguir. Ensaiou-se em passos novos, mas não se importou: no além-mundo em que habitava, nada importava – ela era completa por estar ali.
Agradeceu, então, seu estado de graça rezando a um deus que no fundo era ela mesma. Orou-se por longos minutos e sentou-se de frente ao espelho de mãos dadas às próprias mãos.
Abraçando-se por misericórdia própria, teve medo. Pediu-se em oração a coragem necessária para estar ali, só, em sua própria alma e enfrentou, solitária, a dor de existir apoiando-se em si mesma – ser completa exigia-lhe muito mais do que parecia suportar.
Como que num rito de iniciação, molhou seu rosto novamente em água corrente de torneira e batizou o vazio de plenitude e de amor próprio o que era deus. Orou-se em línguas outras o que nem pôde entender – e soube, então, que o não entendimento era benção edificada.
Antes, por fim, de lembrar-se do mundo que a esperava, guardou em segredo sua alegria particular, que era a verdadeira. E, após um amém sussurrado a si mesma, trancafiou sua alma por detrás dos olhos negros e viveu.
Quente e Profano - por Thiago Terenzi
16:29 postado por Thiago Terenzi
Fechei os olhos e respirei a vida dos mortais – e, há tempos, vivia eu uma vida que é além-humana. Vivia em completa plenitude estática, mas hoje, enfim, respirei o ar que é de se respirar e senti dor. E como é bom senti-la. Como é bom ser humano. Quero é o dinâmico.
Foi tão bonito e tão doloroso... sei que não entendes, mas nem é necessário. É que às vezes a vida de mentira é mais real que a mentira em carne e osso. Viver do que é vivível nos faz melhor – e eu quero tanto que chega a doer. Quero o que me trás vida – vida esta que é de eufemismos.
E que volte o cheiro de cigarro e o corpo em branco e preto; que volte a insegurança e a luz que cega a visão – que volte o mundo, pois preciso de fraquezas. Ser perfeito consome mais do que posso suportar – logo eu que mal suporto a dor.
É que perfeição remete à limites – a perfeição é pequena. Não se pode ir além, pois chegaríamos, então, na imperfeição. E não quero os limites do que é perfeito. Não quero a mente limitada dos que fazem juízo de valor. Se pudesse, acho, seria amoral – a palavra é tão bonita, lembra amor. Quero é seguir uma ética interna que nem consigo racionalizar – e não racionaliza-la é o que a torna especial.
E vivi, como dizia, da vida não-racional que sempre busquei e tive medo. E pude voltar a escrever. É uma espécie de medo-desejo que é combustível da alma. É uma humanidade que falta à luz dos olhos – quero, então, a luz dos olhos.
Mas, por favor, traga-me os olhos aos poucos – é que estou tão acostumado com a escuridão, que luz me cega.
Torno-me, então, humano ao avesso – mas humano, por fim. Cego, mas por escolha para poder sentir-me mais. Torno-me, pois, um eu mesmo que nunca fui. E temo ser este o que sou de verdade.
É que é da dor que me faço o que é existível. Renuncio à perfeição para ser-me eu mesmo. Sou é o vidro embaçado que não vê o exterior – quente e profano. Quero, então, o que há de mais quente e profano no corpo: a carne – pois alma já não me alimenta mais.
Bebi do além-mundo e voltei. A perfeição me recalca – não a quero mais.