Das vantagens de ser bobo - Clarice Lispector

20:58 postado por Thiago Terenzi

Texto narrado por Aracy Balabanian.




O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando."

Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia.

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.

Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.

Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?"

Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!

Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.

O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.

Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!

Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

Medo do desconhecido - Clarice Lispector

20:53 postado por Thiago Terenzi

Texto narrado por Aracy Balabanian.




Então isso era felicidade. E por assim dizer sem motivo. De início se sentiu vazia. Depois os olhos ficaram úmidos: era felicidade, mas como sou mortal, como o amor pelo mundo me transcende. O amor pela vida mortal a assassinava docemente, aos poucos. E o que é que eu faço? Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já está começando a me doer como uma angústia, como um grande silêncio? A quem dou minha felicidade, que já está começando a me rasgar um pouco e me assusta? Não, não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade. Ah, milhares de pessoas não têm coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa desconhecida que é sentir-se feliz, e preferem a mediocridade.

Se eu fosse eu - Clarice Lispector

20:42 postado por Thiago Terenzi

Texto retirado do livro A Descoberta do Mundo e narrado por Aracy Balabanian.





Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase "se eu fosse eu", que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir.

E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como? não sei.

Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro.

"Se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.

Felicidade Clandestina - Clarice Lispector

20:14 postado por Thiago Terenzi

Conto retirado do livro Felicidade Clandestina e narrado por Aracy Balabanian.




Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

Morangos Mofados - Caio Fernando Abreu

20:09 postado por Thiago Terenzi

Conto retirado do livro Morangos Mofados.


Para José Márcio Penido
Let me take you down
‘cause I’m going to strawberryfields
nothíng is real, and nothing to get hung about
strawberryfieldsforever
Lennon & McCartney: “Strawberry fields forever


Prelúdio
No entanto (até no-entanto dizia agora) estava ali e era assim que se via. Era dentro disso que precisava mover-se sob o risco de. Não sobreviver, por exemplo — e queria? Enumerava frases como é-assimqile-as-coisas-são ou que-se-há-de-fazer-que-se-há-de-fazer ou apenas lTttsafinalque.importa. E a cada dia ampliava-se na boca aquele gosto dernorangos mofando, verde doentio guardado no fundo escuro de algama gaveta.

Allegro Agitato
Pois o senhor está em excelente forma, a voz elegante do médico, têniporas grisalhas como um coadjuvante de filme americano, vestido d0 bege, tom sur tom dos sapatos polidos à gravata frouxa, na medida justa entre o desalinho e a descontração. Não há nada errado com o seu coração nem com o seu corpo, muito menos com o seu cérebro. Caro senhor. Acendeu outro cigarro, desses que você fuma o dobro para evitara metade do veneno, mas não é no cérebro que acho que tenho o câncor, doutor, é na alma, e isso não aparece em check-up algum.
Mal do nosso tempo, sei, pensou, sei, agora vai desandar a tecer considerações sócio-político-psicanalíticas sobre O Espantoso Aumento da Hipocondria Motivada Pela Paranóia dos Grande Centros Usbanos, cara bem barbeada, boca de próteses perfeitas, uma puta certa Vt disse que os médicos são os maiores tarados (talvez pela intimidade colstante com a carne humana, considerou), e este? Rápido, analisou: no máximo chupar uma boceta, praticar-sexo-oral, como diria depois, escovando meticuloso suas próteses perfeitas, naturalmente que se o senhor pudesse diminuir o cigarro sempre é bom, muito leite, fervido, é claro, para evitar os cloriformes, ar puro, um pouco de exercício, cooper, quem sabe, mais pensando no futuro do que em termos imediatos, claro. Mas se o futuro, doutor, é um inevitável finalmente alguém apertou o botão e o cogumelo metálico arrancando nossas peles vivas, bateu com cuidado o cigarro no cinzeiro, um cinzeiro de metal, odiava objetos de metal, e tudo no consultório era metal cromado, fórmica, acrílico, anti-séptico, im-po-lu-to, assim o próprio médico, não ousando além do bege. Na parede a natureza-morta com secas uvas brancas, peras pálidas, macilentas maçãs verdes. Nenhuma melancia escancarada, nenhuma pitanga madura, nenhuma manga molhada, nenhum morango sangrento. Um morango mofado — e este gosto, senhor, sempre presente em minha boca?
Azia, má digestão, sorriso complacente de dentes no mínimo trinta por cento autênticos (e o que fazer, afinal? dançar um tango argentino, ou seria cantar? cantarolou calado assim “quiero emborrachar mi corazón para olvidar um toco amor que más que amor fue una traición’ tinha versos à espreita, adequados a qualquer situação, essa uma vantagem secreta sobre os outros, mas tão secreta que era também uma desvantagem, entende? nem eu, versos emboscados da nossa mais fina lira, tangos argentinos e rocks dilacerantes, com ênfase nos solos de guitarra). Um tranqüilizante levinho levinho aí umas cinco miligramas, que o senhor tome três por dia, ao acordar, após o almoço, ao deitar-se, olhos vidrados, mente quieta, coração tranqüilo, sístole, pausa, diástole, pausa, sístole, pausa, diástole, sem vãs taquicardias, freio químico nas emoções. Assim passaria a movimentar-se lépido entre malinhas 007, paletós cardin, etiquetas fiorucci, suavemente drogado, demônios suficientemente adormecidos para não incomodar os outros. Proibido sentimentos, passear sentimentos, passear sentimentos desesperados de cabeça para baixo, proibido emoções cálidas, angústias fúteis, fantasias mórbidas e memórias inúteis, um nirvana da bayer e se é bayer. Suspirou, suspirava muito ultimamente, apanhou a receita, assinou um cheque com fundos, naturalmente, e saiu antes de ouvir um delicado porque, afinal, o senhor ainda é tão jovem.

Adagio sostenuto
Quando acordou, o sol já não batia no terraço, o que trocado em miúdos significavá algo assim como mais-de-duas-da-tarde. Tinha tomado três comprimidos, um pela manhã, outro pelo almoço, outro antes de dormir, só que juntos — e o gosto persistia na boca. Strawberry, pensou, e quis então como antigamente ouvir outra vez os Beaties, mas ainda na cama teve preguiça de dar dois passos até o toca-discos, e onde andariam agora, perdidos entre tantas simones e donnas summers, tanto mas tanto tempo, nem gostava mais de maconha. Acariciou o pau murcho, com vontade longe, querendo mandar parar aquele silêncio horrível de apartamento de homem solteiro, a empregada não viria, ele não tinha colocado gasolina no carro, nem descontado cheque, nem batalhado uma trepadinha de fim de semana, nem tomado nenhuma dessas pré-lúdicas providências-de-sexta-feira-após-o-almoço, e precisava. Precisava inventar um dia inteiro ou dois, porque amanhã é domingo e segunda—feira ninguém sabe o quê.
Acendeu um cigarro, assim em jejum lembrando úlceras, enfisemas, cirroses, camadas fibrosas recobrindo o fígado, mas o fígado continuaria existindo sob as tais fibras ou seria substituído por? Ninguém saberia explicar, cuecas sintéticas dessas que dão pruridos & impotência jogadas sobre o tapete, uma grana, imitação perfeita de persa. O telefone então tocou, como costuma às vezes tocar nessas horas, salvando a página em branco após a vírgula, ele estendeu a mão, tinha dedos até bonitos ele, juntas nodosas revelando angústia & sensibilidade, como diria Alice, mas Alice foi embora faz tempo, a cadela que eu até comia direitinho, estimulando o clitóris comme ilfaut, não é assim que se diz que se faz que se. O telefone tocou uma vez mais, e como se diz nesses casos, mais uma e mais outra e outra mais, enquanto com uma das mãos ele ligava o rádio libertando uma onda desgrenhada de violinos, Wagner, supôs, que tinha sua cultura, sua leitura, valquírias, nazismos, dachaus, judeus, e com a outra acariciava o pau começando a vibrar estimulado talvez pelos violinos, judeus, davis.
O telefone parou, o telefone não fazia nenhum som especial ao parar, mas deveria arfar, gemer quando entrasse fundo, duro e quente, judeuzinho de merda, deve estar metido naquele kibutz no meio da areia plantando trigo, não, trigo acho que não, é muito seco, azeitonas quem sabe, milho talvez, a cabeça quente do pau vibrava na palma da mão, foi no que deu ficar trocando livrinho de Camus por Anna Seghers, pervitin por pambenil, tesão se resolve é na cama, não emprestando livro nem apresentando droga, anote, aprenda, mas agora è troppo tarde, tudo já passou e minha vida não passa de um ontem não resolvido, bom isso. E idiota. E inútil.
Levantou de repente. Foi então que veio a náusea, só o tempo de caminhar até o banheiro e vomitar aos roncos e arquejos, onde estão todos vocês, caralho, onde as comunidades rurais, os nirvanas sem pedágio, o ácido em todas as caixas-d’água de todas as cidades, o azul dos azulejos começando a brilhar, maya, samsara, que às vezes voltava. De súbito lisérgico no meio de uma frase tonta, de um gesto pouco, de um ato porco como esse de vomitar agora as quinze miligramas leves leves. Alice abria as coxas onde a penugem se adensava em pêlos ruivos, depois gemia gostoso, calor molhado lá dentro. Neurônios arrebentados, tem um certo número sobrando, depois vão morrendo, não se recompõem nunca mais, quantos me restarão, meu deus e a mão de pêlos escuros de Davi acariciando as minhas veias até incharem, quase obscenas, latejando azul-claro sob a pele. Sabe, cara, quando te aplico assim com a agulha lá no fundo, às vezes chego a pensar que. Noites sem dormir e a luz do dia esverdeando as caras pálidas e as peles secas desidratadas e as vozes roucas de tanto falar e fumar e falar e fumar. Vomitou mais. Nojo, saudade. Sou um publicitário bem-sucedido, macio, rodando nas nuvens, o Carvalho me disse que rodando-nas-nuvens é do caralho, que achado, cara, você é um poeta, enquanto olho pra ele e não digo nada como eu mesmo já rodei nas nuvens um dia, agora tou aqui, atolado nesta bosta colorida, fodida & bem paga. Strawberryfields: no meio do vômito podia distinguir aqui e ali alguns pedaços de morangos boiando, esverdeados pelo mofo.

Andante ostinato
Nem ontem nem amanhã, só existe agora, repetia Jack Nicholson antes de ser morto a pauladas, enquanto ele espiava Davi jogado no fundo do poço tão profundo que precisaria de uma escada para descer até lá, evitando os escombros da cidadezinha que era ao mesmo tempo Kõln após a guerra e o Passo da Guanxuma, com aquele lago no centro de onde sem parar partiam ou chegavam barcos, nunca saberia, e não importa, Alice corria entre os ciprestes do cemitério sem túmulos enquanto ele gritava Alice, Alice, minha filha, quando é que você vai se convencer que não está mais do outro lado do espelho, até encontrar Billie Holiday em pé na escada entre paredes demolidas, aqueles degraus subindo para o nada, com Billie no topo decepada, solta no espaço de escombros repetindo e repetindo “you’ve changed, baby oh baby, you’ve cbangedso much’ estendeu a mão para socorrer John Lennon mas quando abriu a boca sangrenta, feito um vento preso numa caixa fugiu aquele horrível cheiro de morangos guardados há muito tempo, como um vento vindo do mar, um mar anterior, um mar quase infinito onde nenhuma gota é passado, nenhuma gota é futuro, tudo presente imóvel e em ação contínua, o cheiro de maresia era o mesmo do hálito da pantera biônica de cabelos dourados. Ah tantos anos de análise freudiana kleiniana junguiana reichiana rankiana rogeriana gestáltica. E mofo de morangos.
Gritaria. Mas acordou com o plim-plim eletrônico antes sequer de abrir a boca. O vento fresco da madrugada embalava as cortinas brancas feito velas de um barco encalhado, uma nau com todas as velas pandas, não adianta chorar, Alice, já falei que é loucura, pára de bater essas malditas carreiras, teu nariz vai acabar furando, melhor ser monja budista em Vitória do Espírito Santo ou carmelita descalça em Calcutá ou a mais puta das puras na putaqueapariu, não me olhe assim do fundo do poço, não me encham o saco com esse plim-plim hipnótico, eu fico aqui, meu bem, entre escombros.
Desligou a televisão, saiu para o terraço de plantas empoeiradas, devia cuidar melhor delas, não fosse essa presença viva dentro de mim corroendo carcomendo a célula pirada na alma fermentando o gosto nojento na língua. O cheiro daquele único jasmim espalhado sobre os sete viadutos da avenida mais central. Bastava um leve impulso, debruçou-se no parapeito, entrevado, morto da cintura para baixo, da cintura para cima, da cintura para fora, da cintura para dentro — que diferença faz? Oficializar o já acontecido: perdi um pedaço, tem tempo. E nem morri.


Minueto e rondó
Amanhecia. Não havia ninguém na rua.
Não, foi assim: debruçado no terraço, ele olhou primeiro para cima — e viu que o azul do céu quase preto aqui e ali se fazia cinza cada vez mais claro em direção ao horizonte, se houvesse horizonte, em todo caso atrás dos últimos edifícios que eram, digamos, um sucedâneo de horizontes. E amanhecia, concluiu então. Debruçado no terraço, ele olhou segundo para baixo — e viu que na longa rua não havia rumores nem carros nem pessoas, sóos sete viadutos também desertos. Não havia ninguém na rua, concluiu ainda.
Debruçado no terraço, amanhecia.
Ao mesmo tempo, em seguida, um de-dentro pensou: e se alguém realmente e finalmente apertou o botão? e se aquele cinza-claro no sucedâneo de horizonte for o clarão metálico? e se eu estava dormindo quando tudo aconteceu? e se fiquei sozinho na cidade, no país, no continente, no planeta? Sabia que não. E um outro de-dentro pensava também, se sobrepujando mais claro, quase organizado, não totalmente porque para dizer a verdade não era um pensamento nem uma emoção, mas algo assim como o cinza-claro brotando natural por sobre o horizonte, se houvesse horizonte, ou como o vento fresco batendo nas cortinas, ou ainda como se uma onda nascesse daquele imóvel mar ativo, ali onde começa a luz, onde começa o vento, onde começa a onda, desse lugar qualquer que eu não sei, nem você, nem ele sabia agora: brotou qualquer coisa como — não quero ser piegas, mas talvez não tenha outro jeito — uma luz, um vento, uma onda. Exatamente. Uma onda calma ou arquejante, um vento minuano ou siroco, uma luz mortiça ou luminosa, repito que brotou, repetiu incrédulo.
Ele teve certeza. Ou claras suspeitas. Que talvez não houvesse lesões, no sentido de perder, mas acúmulos no sentido de somar? Sim sim. Transmutações e não perdas irreparáveis, alices-davis que o tempo levara, mas substituições oportunas, como se fossem mágicas, tão a seu tempo viriam, alices-davis que um tempo novo traria? Não era uma sensação química. Ele não tinha a boca seca nem as pupilas dilatadas. Estava exatamente como era, sem aditivos.
Vou-me embora, pensou: a estrada é longa.
Tocou então o próprio corpo. Uma glória interior, foi assim que batizou solene, infinitamente delicado, quando ela brotou. Arpejo, foi o que lhe ocorreu, ridículo complacente, cor-nu-có-pia soletrou, quero um instante assim barroco, desejou. Mas vestido de amarelo como estava, visto de costas contra o céu, supondo que uma câmera cinematográfica colocada aqui na porta desta sala o enquadrasse agora pareceria quase bizantino, ouro sobre azul, magreza mística, que tinha sua cultura, sua leitura. E culpa alguma. Gótico, gemeu torcido, unindo as duas mãos no sexo, no ventre, no peito, no rosto e elevando-as acima da cabeça.
O sol estava nascendo.
Poderia talvez ser internado no próximo minuto, mas era realmente um pouco assim como se ouvisse as notas iniciais de A sagração da primavera. O gosto mofado de morangos tinha desaparecido. Como uma dor de cabeça, de repente. Tinha cinco anos mais que trinta. Estava na metade, supondo que setenta fosse sua conta. Mas era um homem recém-nascido quando voltou-se devagar, num giro de cento e oitenta graus sobre os próprios pés, para deslizar as costas pela sacada até ficar de joelhos sobre os ladrilhos escuros, as mãos postas sobre o sexo.
Abriu os dedos. Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar? Frescos morangos vivos vermelhos.
Achava que sim.
Que sim.
Sim.

Poema antigo - Caio Fernando Abreu

20:03 postado por Thiago Terenzi

Está tudo planejado:
se amanhã o dia for cinzento,
se houver chuva
se houver vento,
ou se eu estiver cansado
dessa antiga melancolia
cinza fria
sobre as coisas
conhecidas pela casa
a mesa posta
e gasta
está tudo planejado
apago as luzes, no escuro
e abro o gás
de-fi-ni-ti-va-men-te
ou então
visto minhas calças vermelhas
e procuro uma festa
onde possa dançar rock
até cair

Os Dragões Não Conhecem o Paraíso - Caio Fernando Abreu

19:55 postado por Thiago Terenzi

Conto retirado do livro Os Dragões Não Conhecem o Paraíso.



Tenho um dragão que mora comigo.

Não, isso não é verdade.

Não tenho nenhum dragão. E, ainda que tivesse, ele não moraria comigo nem com ninguém. Para os dragões, nada mais inconcebível que dividir seu espaço - seja com outro dragão, seja com uma pessoa banal feito eu. Ou invulgar, como imagino que os outros devam ser. Eles são solitários, os dragões. Quase tão solitários quanto eu me encontrei, sozinho neste apartamento, depois de sua partida. Digo quase porque, durante aquele tempo em que ele esteve comigo, alimentei a ilusão de que meu isolamento para sempre tinha acabado. E digo ilusão porque, outro dia, numa dessas manhãs áridas da ausência dele, felizmente cada vez menos freqüentes (a aridez, não a ausência), pensei assim: Os homens precisam da ilusão do amor da mesma forma que precisam da ilusão de Deus. Da ilusão do amor para não afundarem no poço horrível da solidão absoluta; da ilusão de Deus, para não se perderem no caos da desordem sem nexo.

Isso me pareceu gradiloqüente e sábio como uma idéia que não fosse minha, tão estúpidos costumam ser meus pensamentos. E tomei nota rapidamente no guardanapo do bar onde estava. Escrevi também mais alguma coisa que ficou manchada pelo café. Até hoje não consigo decifrá-la. Ou tenho medo da minha - felizmente indecifrável - lucidez daquele dia.

Estou me confundindo, estou me dispersando.

O guardanapo, a frase, a mancha, o medo - isso deve vir mais tarde. Todas essas coisas de que falo agora - as particularidades dos dragões, a banalidade das pessoas como eu -, só descobri depois. Aos poucos, na ausência dele, enquanto tentava compreendê-lo. Cada vez menos para que minha compreensão fosse sedutora, e cada vez mais para que essa compreensão ajudasse a mim mesmo a. Não sei dizer. Quando penso desse jeito, enumero proposições como: a ser uma pessoa menos banal, a ser mais forte, mais seguro, mais sereno, mais feliz, a navegar com um mínimo de dor. Essas coisas todas que decidimos fazer ou nos tornar quando algo que supúnhamos grande acaba, e não há nada a ser feito a não ser continuar vivendo.

Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante.
Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se não fosse nada.

Ninguém perguntará coisa alguma, penso. Depois continuo a contar para mim mesmo, como se fosse ao mesmo tempo o velho que conta e a criança que escuta, sentado no colo de mim. Foi essa a imagem que me veio hoje pela manhã quando, ao abrir a janela, decidi que não suportaria passar mais um dia sem contar esta história de dragões. Consegui evitá-la até o meio da tarde. Dói, um pouco. Não mais uma ferida recente, apenas um pequeno espinho de rosa, coisa assim, que você tenta arrancar da palma da mão com a ponta de uma agulha. Mas, se você não consegue extirpá-lo, o pequeno espinho pode deixar de ser uma pequena dor para se transformar numa grande chaga.

Assim, agora, estou aqui. Ponta fina de agulha equilibrada entre os dedos da mão direita, pairando sobre a palma aberta da mão esquerda. Algumas anotações em volta, tomadas há muito tempo, o guardanapo de papel do bar, com aquelas palavras sábias que não parecem minhas e aquelas outras, manchadas, que não consigo ou não quero ou finjo não poder decifrar.

Ainda não comecei.

Queria tanto saber dizer Era uma vez. Ainda não consigo.

Mas preciso começar de alguma forma. E esta, enfim, sem começar propriamente, assim confuso, disperso, monocórdio, me parece um jeito tão bom ou mau quanto qualquer outro de começar uma história. Principalmente se for uma história de dragões.

Gosto de dizer tenho um dragão que mora comigo, embora não seja verdade. Como eu dizia, um dragão jamais pertence a, nem mora com alguém. Seja uma pessoa banal igual a mim, seja unicórnio, salamandra, harpia, elfo, hamadríade, sereia ou ogro. Duvido que um dragão conviva melhor com esses seres mitológicos, mais semelhantes à natureza dele, do que com um ser humano. Não que sejam insociáveis. Pelo contrário, às vezes um dragão sabe ser gentil e submisso como uma gueixa. Apenas, eles não dividem seus hábitos.

Ninguém é capaz de compreender um dragão. Eles jamais revelam o que sentem. Quem poderia compreender, por exemplo, que logo ao despertar (e isso pode acontecer em qualquer horário, às três ou às onze da noite, já que o dia e a noite deles acontecem para dentro, mas é mais previsível entre sete e nove da manhã, pois essa é a hora dos dragões) sempre batem a cauda três vezes, como se tivessem furiosos, soltando fogo pelas ventas e carbonizando qualquer coisa próxima num raio de mais de cinco metros? Hoje, pondero: talvez seja essa a sua maneira desajeitada de dizer, como costumo dizer agora, ao despertar - que seja doce.

Mas no tempo em que vivia comigo, eu tentava - digamos - adaptá-lo às circunstâncias. Dizia por favor, tente compreender, querido, os vizinho banais do andar de baixo já reclamaram da sua cauda batendo no chão ontem às quatro da madrugada. O bebê acordou, disseram, não deixou ninguém mais dormir. Além disso, quando você desperta na sala, as plantas ficam todas queimadas pelo seu fogo. E, quanto você desperta no quarto, aquela pilha de livros vira cinzas na minha cabeceira.

Ele não prometia corrigir-se. E eu sei muito bem como tudo isso parece ridículo. Um dragão nunca acha que está errado. Na verdade, jamais está. Tudo que faz, e que pode parecer perigoso, excêntrico ou no mínimo mal-educado para um humano igual a mim, é apenas parte dessa estranha natureza dos dragões. Na manhã, na tarde ou na noite seguintes, quanto ele despertasse outra vez, novamente os vizinhos reclamariam e as prímulas amarelas e as begônias roxas e verdes, e Kafka, Salinger, Pessoa, Clarice e Borges a cada dia ficariam mais esturricados. Até que, naquele apartamento, restássemos eu e ele entre as cinzas. Cinzas são como sedas para um dragão, nunca para um humano, porque a nós lembra destruição e morte, não prazer. Eles trafegam impunes, deliciados, no limiar entre essa zona oculta e a mais mundana. O que não podemos compreender, ou pelo menos aceitar.

Além de tudo: eu não o via. Os dragões são invisíveis, você sabe. Sabe? Eu não sabia. Isso é tão lento, tão delicado de contar - você ainda tem paciência? Certo, muito lógico você querer saber como, afinal, eu tinha tanta certeza da existência dele, se afirmo que não o via. Caso você dissesse isso, ele riria. Se, como os homens e as hienas, os dragões tivessem o dom ambíguo do riso. Você o acharia talvez irônico, mas ele estaria impassível quanto perguntasse assim: mas então você só acredita naquilo que vê? Se você dissesse sim, ele falaria em unicórnios, salamandras, harpias, hamadríades, sereias e ogros. Talvez em fadas também, orixás quem sabe? Ou átomos, buracos negros, anãs brancas, quasars e protozoários. E diria, com aquele ar levemente pedante: "Quem só acredita no visível tem um mundo muito pequeno. Os dragões não cabem nesses pequenos mundos de paredes invioláveis para o que não é visível".

Ele gostava tanto dessas palavras que começam com in - invisível, inviolável, incompreensível -, que querem dizer o contrário do que deveriam. Ele próprio era inteiro o oposto do que deveria ser. A tal ponto que, quando o percebia intratável, para usar uma palavra que ele gostaria, suspeitava-o ao contrário: molhado de carinho. Pensava às vezes em tratá-lo dessa forma, pelo avesso, para que fôssemos mais felizes juntos. Nunca me atrevi. E, agora que se foi, é tarde demais para tentar requintadas harmonias.

Ele cheirava a hortelã e alecrim. Eu acreditava na sua existência por esse cheiro verde de ervas esmagadas dentro das duas palmas das mãos. Havia outros sinais, outros augúrios. Mas quero me deter um pouco nestes, nos cheiros, antes de continuar. Não acredite se alguém, mesmo alguém que não tenha um mundo pequeno, disser que os dragões cheiram a cavalos depois de uma corrida, ou a cachorros das ruas depois da chuva. A quartos fechados, mofo, frutas podres, peixe morto e maresia - nunca foi esse o cheiro dos dragões.

A hortelã e alecrim, eles cheiram. Quando chegava, o apartamento inteiro ficava impregnado desse perfume. Até os vizinhos, aqueles do andar de baixo, perguntavam se eu andava usando incenso ou defumação. Bem, a mulher perguntava. Ela tinha uns olhos azuis inocentes. O marido não dizia nada, sequer me cumprimentava. Acho que pensava que era uma dessas ervas de índio que as pessoas costumam fumar quando moram em apartamentos, ouvindo música muito alto. A mulher dizia que o bebê dormia melhor quando esse cheiro começava a descer pelas escadas, mais forte de tardezinha, e que o bebê sorria, parecendo sonhar. Sem dizer nada, eu sabia que o bebê sonhava com dragões, unicórnios ou salamandras, esse era um jeito do seu mundo ir-se tornando aos poucos mais largo. Mas os bebês costumam esquecer dessas coisas quanto deixam de ser bebês, embora possuam a estranha facilidade de ver dragões - coisa que só os mundos muito largos conseguem.

Eu aprendi o jeito de perceber quando o dragão estava a meu lado. Certa vez, descemos juntos pelo elevador com aquela mulher de olhos-azuis-inocentes e seu bebê, que também tinha olhos-azuis-inocentes. O bebê olhou o tempo todo para onde estava o dragão. Os dragões param sempre do lado esquerdo das pessoas, para conversar direto com o coração. O ar a meu lado ficou leve, de uma coloração vagamente púrpura. Sinal que ele estava feliz. Ele, o dragão, e também o bebê, e eu, e a mulher, e a japonesa que subiu no sexto andar, e um rapaz de barba no terceiro. Sorríamos suaves, meio tolos, descendo juntos pelo elevador numa tarde que lembro de abril - esse é o mês dos dragões - dentro daquele clima de eternidade fluida que apenas os dragões, mas só às vezes, sabem transmitir.

Por situações como essa, eu o amava. E o amo ainda, quem sabe mesmo agora, quem sabe mesmo sem saber direito o significado exato dessa palavra seca - amor. Se não o tempo todo, pelo menos quanto lembro de momentos assim. Infelizmente, raros. A aspereza e avesso parecem ser mais constantes na natureza dos dragões do que a leveza e o direito. Mas queria falar de antes do cheiro. Havia outros sinais, já disse. Vagos, todos eles.

Nos dias que antecediam a sua chegada, eu acordava no meio da noite, o coração disparado. As palmas das mãos suavam frio. Sem saber porque, nas manhãs seguintes, compulsivamente eu começava a comprar flores, limpar a casa, ir ao supermercado e à feira para encher o apartamento de rosas e palmas e morangos daqueles bem gordos e cachos de uvas reluzentes e berinjelas luzidias (os dragões, descobri depois, adoram contemplar berinjelas) que eu mesmo não conseguia comer. Arrumava em pratos, pelos cantos, com flores e velas e fitas, para que os espaços ficassem mais bonito.

Como uma fome, me dava. Mas uma fome de ver, não de comer. Sentava na sala toda arrumada, tapete escovado, cortinas lavadas, cestas de frutas, vasos de flores - acendia um cigarro e ficava mastigando com os olhos a beleza das coisas limpas, ordenadas, sem conseguir comer nada com a boca, faminto de ver. À medida que a casa ficava mais bonita, eu me tornava cada vez mais feio, mais magro, olheiras fundas, faces encovadas. Porque não conseguia dormir nem comer, à espera dele. Agora, agora vou ser feliz, pensava o tempo todo numa certeza histérica. Até que aquele cheiro de alecrim, de hortelã, começasse a ficar mais forte, para então, um dia, escorregar que nem brisa por baixo da porta e se instalar devagarzinho no corredor de entrada, no sofá da sala, no banheiro, na minha cama. Ele tinha chegado.

Esses ritmos, só descobri aos poucos. Mesmo o cheiro de hortelã e alecrim, descobri que era exatamente esse quando encontrei certas ervas numa barraca de feira. Meu coração disparou, imaginei que ele estivesse por perto. Fui seguindo o cheiro, até me curvar sobre o tabuleiro para perceber: eram dois maços verdes, a hortelã de folhinhas miúdas, o alecrim de hastes compridas com folhas que pareciam espinhos, mas não feriam. Pergunte o nome, o homem disse, eu não esqueci. Por pura vertigem, nos dias seguintes repetia quanto sentia saudade: alecrim hortelã alecrim hortelã alecrim hortelã alecrim.

Antes, antes ainda, o pressentimento de sua visita trazia unicamente ansiedade, taquicardias, aflição, unhas roídas. Não era bom. Eu não conseguia trabalhar, ira ao cinema, ler ou afundar em qualquer outra dessas ocupações banais que as pessoas como eu têm quando vivem. Só conseguia pensar em coisas bonitas para a casa, e em ficar bonito eu mesmo para encontrá-lo. A ansiedade era tanta que eu enfeiava, à medida que os dias passavam. E, quando ele enfim chegava, eu nunca tinha estado tão feio. Os dragões não perdoam a feiúra. Menos ainda a daqueles que honram com sua rara visita.

Depois que ele vinha, o bonito da casa contrastando com o feio do meu corpo, tudo aos poucos começava a desabar. Feito dor, não alegria. Agora agora agora vou ser feliz, eu repetia: agora agora agora. E forçava os olhos pelos cantos de prata esverdeadas, luz fugidia, a ponta em seta de sua cauda pela fresta de alguma porta ou fumaça de suas narinas, sempre mau, e a fumaça, negra. Naqueles dias, enlouquecia cada vez mais, querendo agora já urgente ser feliz. Percebendo minha ânsia, ele tornava-se cada vez mais remoto. Ausentava-se, retirava-se, fingia partir. Rarefazia seu cheiro de ervas até que não passasse de uma suspeita verde no ar. Eu respirava mais fundo, perdia o fôlego no esforço de percebê-lo, dias após dia, enquanto flores e frutas apodreciam nos vasos, nos cestos, nos cantos. Aquelas mosquinhas negras miúdas esvoaçavam em volta delas, agourentas.

Tudo apodrecia mais e mais, sem que eu percebesse, doído do impossível que era tê-lo. Atento somente à minha dor, que apodrecia também, cheirava mal. Então algum dos vizinhos batia à porta para saber se eu tinha morrido e sim, eu queria dizer, estou apodrecendo lentamente, cheirando mal como as pessoas banais ou não cheiram quando morrem, à espera de uma felicidade que não chega nunca. Ele não compreenderia. Eu não compreendia, naqueles dias - você compreende?

Os dragões, já disse, não suportam a feiúra. Ele partia quando aquele cheiro de frutas e flores e, pior que tudo, de emoções apodrecidas tornava-se insuportável. Igual e confundido ao cheiro da minha felicidade que, desta e mais uma vez, ele não trouxera. Dormindo ou acordado, eu recebia sua partida como um súbito soco no peito. Então olhava para cima, para os lados, à procura de Deus ou qualquer coisa assim - hamadríades, arcanjos, nuvens radioativas, demônios que fossem. Nunca os via. Nunca via nada além das paredes de repente tão vazias sem ele.

Só quem já teve um dragão em casa pode saber como essa casa parece deserta depois que ele parte. Dunas, geleiras, estepes. Nunca mais reflexos esverdeados pelos cantos, nem perfume de ervas pelo ar, nunca mais fumaças coloridas ou formas como serpentes espreitando pelas frestas de portas entreabertas. Mais triste: nunca mais nenhuma vontade de ser feliz dentro da gente, mesmo que essa felicidade nos deixe com o coração disparado, mãos úmidas, olhos brilhantes e aquela fome incapaz de engolir qualquer coisa. A não ser o belo, que é de ver, não de mastigar, e por isso mesmo também uma forma de desconforto. No turvo seco de uma casa esvaziada da presença de um dragão, mesmo voltando a comer e a dormir normalmente, como fazem as pessoas banais, você não sabe mais se não seria preferível aquele pântano de antes, cheio de possibilidades - que não aconteciam, mas que importa? - a esta secura de agora. Quando tudo, sem ele, é nada.

Hoje, acho que sei. Um dragão vem e parte para que seu mundo cresça? Pergunto - porque não estou certo - coisas talvez um tanto primárias, como: um dragão vem e parte para que você aprenda a dor de não tê-lo, depois de ter alimentado a ilusão de possuí-lo? E para, quem sabe, que os humanos aprendam a forma de retê-lo, se ele um dia voltar?

Não, não é assim. Isso não é verdade.

Os dragões não permanecem. Os dragões são apenas a anunciação de si próprios. Eles se ensaiam eternamente, jamais estréiam. As cortinas não chegam a se abrir para que entrem em cena. Eles se esboçam e se esfumam no ar, não se definem. O aplauso seria insuportável para eles: a confirmação de que sua inadequação é compreendida e aceita e admirada, e portanto - pelo avesso igual ao direito - incompreendida, rejeitada, desprezada. Os dragões não querem ser aceitos. Eles fogem do paraíso, esse paraíso que nós, as pessoas banais, inventamos - como eu inventava uma beleza de artifícios para esperá-lo e prendê-lo para sempre junto a mim. Os dragões não conhecem o paraíso, onde tudo acontece perfeito e nada dói nem cintila ou ofega, numa eterna monotonia de pacífica falsidade. Seu paraíso é o conflito, nunca a harmonia.

Quando volto apensar nele, nestas noites em que dei para me debruçar à janela procurando luzes móveis pelo céu, gosto de imaginá-lo voando com suas grandes asas douradas, solto no espaço, em direção a todos os lugares que é lugar nenhum. Essa é sua natureza mais sutil, avessa às prisões paradisíacas que idiotamente eu preparava com armadilhas de flores e frutas e fitas, quando ele vinha. Paraísos artificiais que apodreciam aos poucos, paraíso de eu mesmo - tão banal e sedento - a tolerar todas as suas extravagâncias, o que devia lhe soar ridículo, patético e mesquinho. Agora apenas deslizo, sem excessivas aflições de ser feliz.

As manhãs são boas para acordar dentro delas, beber café, espiar o tempo. Os objetos são bons de olhar para eles, sem muitos sustos, porque são o que são e também nos olham, com olhos que nada pensam. Desde que o mandei embora, para que eu pudesse enfim aprender a grande desilusão do paraíso, é assim que sinto: quase sem sentir.

Resta esta história que conto, você ainda está me ouvindo? Anotações soltas sobre a mesa, cinzeiros cheios, copos vazios e este guardanapo de papel onde anotei frases aparentemente sábias sobre o amor e Deus, com uma frase que tenho medo de decifrar e talvez, afinal, diga apenas qualquer coisa simples feito: nada disso existe.

Nada, nada disso existe.

Então quase vomito e choro e sangro quando penso assim. Mas respiro fundo, esfrego as palmas das mãos, gero energia em mim. Para manter-me vivo, saio à procura de ilusões como o cheiro das ervas ou reflexos esverdeados de escamas pelo apartamento e, ao encontrá-los, mesmo apenas na mente, tornar-me então outra vez capaz de afirmar, como num vício inofensivo: tenho um dragão que mora comigo. E, desse jeito, começar uma nova história que, desta vez sim, seria totalmente verdadeira, mesmo sendo completamente mentira. Fico cansado do amor que sinto, e num enorme esforço que aos poucos se transforma numa espécie de modesta alegria, tarde da noite, sozinho neste apartamento no meio de uma cidade escassa de dragões, repito e repito este meu confuso aprendizado para a criança-eu-mesmo sentada aflita e com frio nos joelhos do sereno velho-eu-mesmo:

- Dorme, só existe o sonho. Dorme, meu filho. Que seja doce.

Não, isso também não é verdade.

Os Sobreviventes - Caio Fernando Abreu

19:51 postado por Thiago Terenzi

Conto retirado do livro Morangos Mofados.



(Para ler ao som de Angela Ro-Ro)
Para Jane Araújo, a Magra


SRI LANKA, quem sabe? Ela me diz, morena e ferina, e eu respondo por que não? mas inabalável continua: você pode pelo menos mandar cartões-postais de lá, para que as pessoas pensem nossa, como é que ele foi parar em Sri Lanka, que cara louco esse, hein, e morram de saudade, não é isso que te importa? uma certa saudade: em Sri Lanka, brincando de Rimbaud, que nem foi tão longe, para que todos lamentem ai como ele era bonzinho e nós não lhe demos a dose suficiente de atenção para que ficasse aqui entre nós, palmeiras e abacaxis. Sem parar, abana-se com a capa do disco de Ângela enquanto fuma sem parar e bebe sem parar sua vodka nacional sem gelo nem limão. Quanto a mim, a voz rouca, fico por aqui comparecendo a atos públicos, entre uma e outra carreira, pixando muros contra usinas nucleares, em plena ressaca, um dia de monja, um dia de puta, um dia de Joplin, um dia de Tereza de Calcutá, um dia de merda enquanto seguro aquele maldito emprego de oito horas diárias para poder pagar essa poltrona de couro autêntico onde neste exato momento vossa reverendíssima assenta sua preciosa bunda e essa exótica mesinha de centro em junco indiano que apóia vossos fatigados pés descalços ao fim de mais uma semana de batalhas inúteis, fantasias escapistas, maus orgasmos e crediários atrasados. Mas tentamos tudo, eu digo, e ela diz que sim, claaaaaaaro, tentamos tudo, inclusive trepar, porque tantos livros emprestados, tantos filmes vistos juntos, tantos pontos de vista sócio político artístico filosófico existenciais e bababá em comum só podiam dar mesmo nisso: cama. Realmente tentamos, mas foi uma bosta. Que foi que aconteceu, eu pensava depois acendendo um cigarro no outro, e não queria lembrar mas não me saía da cabeça o teu pau murchos e os bicos do meus seios que nem sequer ficaram duros, pela primeira vez na vida, você disse, e eu acreditei, pela primeira vez na vida, eu disse, mas não sei se você acreditou. Quero dizer que sim, que acreditei, mas ela não pára, tanta tesão mental espiritual moral existencial e nenhuma física, e eu não queria aceitar que fosse isso: éramos diferentes, ai como éramos diferentes, éramos melhores, éramos mais, éramos superiores, éramos escolhidos, éramos vagamente sagrados, mas no final das contas os bicos dos meus peitos não endureceram e o teu pau não levantou, cultura demais mata o corpo da gente, cara, filmes demais, livros demais, palavras demais, só consegui te possuir me masturbando, tinha a biblioteca de Alexandria separando nossos corpos, enfiava fundo o dedo na buceta noite após noite pedindo mete fundo, coração, explode junto comigo, depois virava de bruços e chorava no travesseiro porque naquele tempo ainda tinha culpa nojo vergonha, mas agora tudo bem, o Relatório Hite liberou a punheta. Não que fosse amor de menos, você dizia depois, ao contrário, era amor demais, você acreditava mesmo nisso? Naquele bar infecto onde costumávamos afogar nossas impotências em baldes de lirismo juvenil, imbecil, e eu disse não, o que acontece é que como bons-intelectuais-pequeno-burgueses o teu negócio é homem e o meu é mulher, podíamos até formar um casal incrível, tipo aquela amante de Virginia Woolf, como era mesmo? Vita, Vita Sackville-West e o veado do marido, não se erice, queridinho, não tenho nada contra veados, me passa a vodka, o quê? e eu lá tenho grana pra comprar wyborowas? não tenho nada contra lésbicas, não tenho nada contra decadentes em geral, não tenho nada contra qualquer coisa que soe a: uma tentativa. Peço cigarro e ela me atira o maço na cara, com que joga um tijolo, ando angustiada demais, meu amigo, palavrinha antiga essa, angústia, duas décadas de convívio cotidiano, mas ando, ando, tenho uma coisa apertada aqui no meu peito, um sufoco, uma sede, um peso, não me venha com essas história de atraiçoamos-todos-os-nossos-ideais, nunca tive porra de ideal nenhum, só queria era salvar a minha, ,veja só que coisa mais individualista elitista, capitalista, só queria ser feliz, cara. Podia ter dado certo entre a gente, ou não, afinal você naquele tempo ainda não tinha se decidido a dar a bunda, nem eu a lamber buceta, ai que gracinha nossos livrinhos de Marx, depois Marcuse, depois Reich, depois Castañeda, depois Laing embaixo do braço, aqueles sonhos colonizados nas cabecinhas idiotas, bolsas na Sorbonne, chás com Simone e Jean-Paul nos 50, em Paris; 60 em Londres ouvindo here comes the sun here comes the sun, little darling; 70 em Nova Iorque dançando disco-music no Studio 54; 80 a gente aqui, mastigando essa coisa porca sem conseguir engolir nem cuspir fora em esquecer esse gosto azedo na boca. Já li tudo, cara, já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação Cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora o que faço? Não é plágio do Pessoa, mas em cada canto do meu quarto tenho uma imagem de Buda, uma de mãe Oxum, outra de Jesuzinho, um pôster de Freud, às vezes acendo vela, faço reza, queimo incenso, tomo banho de arruda, jogo sal grosso nos cantos, não te peço solução nenhuma, você vai curtir os seus nativos de Sri Lanka depois me manda um cartão-postal contando qualquer coisa como ontem à noite, à beira do rio, deve haver um rio por lá, um rio lodoso, cheio de juncos sombrios, mas ontem na beira do rio, sem planejar nada, de repente, por acaso, encontrei um rapaz de tez azeitonada e olhos oblíquos que. Hein? claro que deve haver alguma espécie de dignidade nisso tudo, ,a questão é onde, ,não nesta cidade escura, não neste planeta podre e pobre, dentro de mim? Ora não me venhas com autoconhecimentos-redentores, já sei tudo de mim, tomei mais de cinqüenta ácidos fiz seis anos de análise, já pirei de clínica, lembra? você me levava maçãs argentinas e fotonovelas italianas, Rossana Galli, Franco Andrei, Michela Roc, Sandro Moretti, eu te olhada entupida de mandrix e babava soluçando perdi minha alegria, anoiteci, roubaram minha esperança, enquanto você, solidário e positivo, apertava meu ombro com sua mão apesar de tudo viril repetindo reage, companheira, reage, a causa precisa dessa tua cabecinha privilegiada, teu potencial criativo, tua lucidez libertária, bababá bababá. As pessoas se transformavam em cadáveres decompostos à minha frente, minha pele era triste e suja, as noites não terminavam nunca, ninguém me tocava, mas eu reagi, despirei, e cadê a causa, cadê a luta, cadê o potencial criativo? Mato, não mato, atordôo minha sede com sapatinhos do Ferro’s Bar ou encho a cara sozinha aos sábados esperando o telefone tocar, e nunca toca, ouvindo samba-canção e blues com caipira de vodka, neste apartamento que pago com o suor do potencial criativo da bunda que dou oito horas diárias pra aquela multinacional fodida. Mas eu quero dizer, e ela me corta mansa, claro que você não tem culpa, coração, caímos exatamente na mesma ratoeira, a única diferença é que você pensa que pode escapar, eu quero chafurdar na dor deste ferro enfiado fundo na minha garganta seca, me passa o cigarro, não estou desesperada, ,não mais do que sempre estive, não estou bêbada nem louca, estou é lúcida pra caralho e sei claramente que não tenho nenhuma saída, não se preocupe, depois que você sair tomo banho frio, lente quente com mel de eucalipto e gin-seng, depois deito, depois durmo, depois acordo e passo uma semana a ban-chá e arroz integral, absolutamente santa, absolutamente pura, absolutamente limpa, depois tomo outro porre, cheiro cinco gramas, bato o carro numa esquina ou ligo para o CVV às quatro da madrugada e alugo a cabeça dum panaca qualquer choramingando coisas do tipo preciso-tanto-de-uma-razão-para-viver-e-sei-que-esta-razão-só-está-dentro-de-mim-bababá-bababá, até o sol pintar atrás daqueles edifícios, não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser continuar, tem coisa mais destrutiva que insistir sem fé nenhuma? Passa devagar a tua mão na minha cabeça, no meu coração, eu tive tanto amor um dia, pára e pede, preciso tanto, tanto, tanto, bicho, não me permitiram, então estendo os dedos e ela fica subitamente pequenina apertada contra meu peito, perguntando se está mesmo muito feia e meio puta e muito velha e completamente bêbada, eu não tinha essas marcas em volta dos olhos, eu não tinha esses vincos em torno da boca, eu não tinha esse jeito de sapatão cansado, e eu repito que não, que está linda assim, desgrenhada e viva, ela pede que eu coloque uma música e escolho o Noturno número dois em mi bemol de Chopin, quero deixá-la assim, dormindo no escuro, sobre este sofá, ao lado das papoulas quase murchas, embalada pelo piano remoto como uma canção de ninar, mas ela se contrai violenta e peded que eu ponha Angela outra vez, então viro o disco, amor meu grande amor, caminhamos tontos até o banheiro onde sustento sua cabeça sobre a privada para que vomite, e sem querer vomito junto, ao mesmo tempo, os dois abraçados, bocas amargas, fragmentos azedos sobre as línguas, ela puxa a descarga e vai me empurrando para a porta, pedindo que me vá, e me expulsa para o corredor dizendo não esqueça então de mandar um cartão de Sri Lanka, aquele rio lodoso, aquela tez azeitonada, que aconteça alguma coisa bem bonita para você, te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bem bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar em todos de novo, que leve para longe da minha boca esse gosto podre de fracasso, de derrota sem nobreza, não tem jeito, companheiro, nos perdemos no meio da estrada e nunca tivemos mapa algum, ninguém dá mais carona e a noite já vem chegando. A chave gira na porta. Preciso me apoiar contra a parede para não cair. Atrás da madeira, misturada ao piano e à voz rouca de Angela, nem que eu rastejasse até o Leblon, consigo ouvi-la repetindo que tudo vai bem, tudo continua bem, tudo muito bem, tudo bem. Axé, axé, axé! eu digo e insisto, até o elevador chegar. Axé, odara!

O seu caso de amor - e ódio, porque não? - com Caio Fernando Abreu

16:17 postado por Thiago Terenzi


Luiz Fernando Emediato era um jovem e talentoso escritor contemporâneo e amigo de Caio Fernando Abreu. Ganhou diversos prêmios literários, tornou-se um jornalista de sucesso, mas – mas sabe-se lá o porquê, acabou não entrando no hall dos grandes escritores brasileiros dos anos da ditadura. A seleção natural literária segue caminhos não-lógicos que são difíceis de entender. Sabe-se lá o que vai resistir ao tempo...

Mas vamos ao que interessa: hoje ele é o editor da Geração Editorial e publica livros de diversos autores, alguns conhecidos, outros nem tanto. No site da editora, publica, vez ou outra, textos, crônicas, colunas, tudo muito bem escrito. Num desses textos, com uma coragem que vale ser reconhecida, resolveu contar seu “caso de amor com Caio Fernando Abreu”. É uma história fascinante, que nos mostra Caio sob um outro prisma. O texto vale a pena ser lido:



Meu caso de amor com Caio Fernando Abreu
O editor da Geração revela os comoventes bastidores de uma relação secreta, de amor e ódio, que durou mais de 20 anos, com o escritor Caio Fernando Abreu


Quando conheci Caio Fernando Abreu, em 1976, eu tinha 24 anos, pensava em derrubar a ditadura militar pelas armas e fazia parte de um grupo de jovens candidatos a escritores, músicos e artistas plásticos que imaginavam provocar uma revolução na arte brasileira e mundial, com seus textos críticos, contos, romances, poe-mas, canções, ilustrações e manifestos.

Em 1984, nós nos reencontramos em Gramado, no Festival de Cinema. Os gaúchos Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil tinham filmado um conto meu, Verdes Anos. Outro gaúcho, Sérgio Amon, filmara um conto de Caio, Aqueles Dois. Verdes Anos falava de jovens alienados vivendo na ditadura sangrenta do general Médici. Aqueles Dois falava da amizade entre dois homens.

O socialismo ainda era uma idéia na qual se podia acreditar; usávamos drogas alucinógenas para ficar cara a cara com o Deus no qual não acreditávamos; defendíamos e praticávamos o amor livre; tínhamos toda a coragem do mundo, mas também todas as inseguranças, incertezas e paranóias.

Foi neste mundo imperfeito, em que militares ainda matavam jornalistas e operários, a imprensa e as artes estavam censuradas e o Brasil descobria ter sido falso o “milagre econômico” do general Médici e do economista Delfim Neto que comecei uma relação muito intensa, criativa e comovente, mas também decepcionante e amarga, com o escritor Caio Fernando Abreu.

Começou por meio de cartas, com a descoberta de pontos comuns em nossas idéias e anseios, cresceu com a relação pessoal e a consolidação de uma grande ami-zade e só não virou um caso de amor porque, heterossexual convicto, não pude amá-lo como queria, esfriou com a maturidade e se deteriorou completamente quando, assumidamente homossexual e caminhando para a morte pela Aids, o sombrio e amargurado Caio passou a ver nos heterossexuais e nas pessoas razoavelmente equili-bradas e felizes seres imperfeitos e indignos de contar com sua amizade.

Ao longo de cinco anos, num tempo em que não havia e-mails, trocamos uma vasta correspondência, interrompida quando ele deixou o país e nunca mais retomada depois que ele voltou, principalmente, claro, depois que passou a viver em São Paulo e pudemos conviver pessoalmente, numa relação conflituada e quase sempre absurda.

Paranóico, emocionalmente instável, hiper-sensível, comoventemente frágil e absolutamente infeliz, Caio parecia sofrer todos os dias. Quase nunca sorria. Odiava quem não gostasse de seus amigos e ídolos, como, já nos anos 80, Cazuza, Caetano Veloso, Ney Matogrosso, Miguel Falabella, Rita Lee, Antonio Bivar.

Quatro anos depois, em 1988, Caio vivia extremas dificuldades financeiras. Chamei-o então para trabalhar comigo no Caderno 2 de O Estado de S. Paulo, que eu diri-gia na época. Foi um desastre. Desaparelhado para o exer-cício do estafante jornalismo diário, vivia às custas de pílulas e cada texto a ser editado parecia pesar uma tone-lada para seus ombros frágeis e magros.

Convidei-o para escrever uma crônica todas as quartas-feiras e fez grande sucesso: era, segundo as pesquisas, um dos autores mais lidos no Caderno 2. Mas, chocado com minha agitação, meus gritos diários para editar o jornal no prazo determinado, minha falta de sensibilidade para entender melhor as pessoas de sua condição, passou a ver-me como o chefe careta que usava gravata, enquanto ele usava brinco. Olhava-me todos os dias com olhos de mágoa e desalento.

Eu já tinha fundado a Geração Editorial, no início dos anos 90, quando ele, que convivia dramaticamente com a doença que haveria de matá-lo, pediu-me ajuda. Quis traduzir um romance de Will Self cujos direitos tínhamos comprado e dei-lhe o trabalho e um adiantamento, mas um ano e meio depois devolveu o livro sem uma só página traduzida. Justificou estar estafado por causa da doença, mas continuou escrevendo sua crônica semanal e textos para revistas. Queria devolver o adiantamento, em parcelas. Disse que não era necessário.

Nossa editora publicou um texto dele, reminiscências de sua vida em Londres, no livro Viagem Inteligente, cujos direitos pertencem à Editora Abril, que autorizara a publicação do texto, ao lado dos de Antonio Callado, João Ubaldo Ribeiro, Lygia Fagundes Telles, Luiz Fernando Veríssimo, Gianfrancesco Guarnieri e Nélida Piñon. Recla-mou da edição em termos duros e amargos, chamando-me cerimoniosamente de “senhor editor”.

Respondi com uma carta dura, dizendo-lhe que o fato de estar perto da morte não lhe autorizava ser tão duro e injusto com as pessoas. Acho que a carta foi dura demais – ele nunca respondeu.

Morreu sem que pudéssemos nos ver e falar de novo. Sempre quis procurá-lo, abraçá-lo, dizer que o amava do meu jeito e jamais poderia amá-lo do jeito dele. Sem coragem para dizer-lhe frente a frente o que pensava, uma vez escrevi uma crônica, publicada num domingo, em que lembrava as cartas que um jovem escritor me en-viava, nos anos 70. Caio não foi trabalhar na segunda, e na terça chegou com sua crônica das quartas-feiras falando do cinismo e da mentira. Era a resposta que queria dar.

Hoje, mais de 25 anos depois da primeira carta que nos aproximou, descobri parte daqueles velhos papéis. A maior parte das cartas se perdeu. As nove que restaram, e que publicamos a seguir, revelam a beleza e a tragédia da vida deste grande escritor brasileiro tão precocemen-te falecido. Era o meu amigo Caio. E eu gostava dele.

Os paladinos do oeste e seus sonhos mirabolantes

Minha memória não consegue recuperar os termos de minha primeira carta para Caio Fernando Abreu, no início de 1976. Sei que ele guardou algumas elas, que se encontram hoje na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Naquele tempo – os anos de chumbo da ditadura militar, da censura e da repressão – os jovens escritores brasileiros publicavam seus textos em revistas, jornais e suplementos, e se correspondiam intensamente.

Eu era estudante de Jornalismo e estagiário na sucursal do Jornal do Brasil em Belo Horizonte desde 1973 e editava duas revistas culturais, Silêncio, que a polícia fechou, e Inéditos, que escapou do fechamento, mas ficou, enquanto existiu, sob censura prévia. Havia lido um livro de Caio, O Ovo Apunhalado e acompanhava seus textos pelos suplementos literários. Pedi a ele um conto para ser publicado na Inéditos. Começou aí nossa amizade.

Os jornais diziam que havia um boom na literatura brasileira. Ignácio de Loyola Brandão publicara Zero na Itália, e a edição brasileira acabou censurada. Logo depois Rubem Fonseca teve proibido seu violentíssimo Feliz Ano Novo. Murilo Rubião, um velho escritor mineiro dos anos 40, tinha sido redescoberto e um livro dele, O Ex-Mágico, era adotado em centenas de escolas. Roberto Drummond, com A Morte de D. J. em Paris, também. Roberto tinha sido revelado em 1971 pelo famoso Concurso Nacional de Contos do Paraná. Naquele mesmo ano eu, então com 19, ganhei o prêmio Revelação de Autor.

Desde então, para minha alegria e tristeza, passei a ser considerado – mais pela idade e menos pela obra, creio – uma espécie de garoto-prodígio da nova literatura brasileira. Em 1977, quando publiquei meu primeiro livro, aos 25 anos, o crítico Flávio Moreira da Costa escreveria na IstoÉ que eu não passava de uma Shirley Temple da literatura brasi-leira: surpreendente enquanto jovem, ruim à medida em que fosse envelhecendo. Acho que tinha razão.

Jornais e revistas literárias, todas em confronto com a ditadura militar, surgiam e desapareciam em quase todo o país: Paralelo no Sul, Anima no Rio, Silêncio, Circus e Inéditos em Minas, Escrita em São Paulo, O Saco no Nordeste... Era incrível a agitação, a revol-ta contra a opressão, a criatividade e a diversidade de estilos: do under- ground hippie à literatura de resistência democrática, mistura de arte e jorna-lismo, e entre os dois extremos todo o tipo de experiências. José Agripino de Paula, Sebastião Nunes, Deonísio da Silva, João Silvério Trevisan, Ivan Ângelo, Sérgio Sant’Anna, Márcia Denser, João Antonio, Antonio Torres, Oswaldo França Júnior, Adélia Prado, Márcio Souza e outros mais surpreendiam os leitores e os críticos com obras contundentes.

Publiquei meu primeiro livro, Não Passarás o Jordão, em 1977, e a história principal tinha como personagem o jornalista Wladimir Herzog, assassinado sob tortura no Doi-Codi em São Paulo, em 1975. O livro ganhara vários prêmios, mas ninguém se animava a publicá-lo, por causa do tema. Até que Fernando Mangarielo, da Alfa Omega, de São Paulo, teve a coragem de fazê-lo. Queria contratar todos os meus livros e fazer de mim “um novo Jorge Amado”. O Partido Comunista deu o maior apoio. Mas to-das as críticas que elogiavam o livro (exa-geradamente, percebe-se hoje), não podiam dizer do que ele tratava. A imprensa estava sob censura.

Brigamos com a censura – fizemos em Minas um manifesto que 1.046 intelectuais brasileiros assinaram – até que o ministro da Justiça do general Geisel, Armando Falcão, foi à TV dizer que nosso pedido não contava com o apoio da “sociedade brasileira”, que, pelo contrário, pedia era mais censura, para preservar “a moral e os bons costumes”.

Foi nesta época fervilhante que O Pasquim – o jornal mais influente da esquerda, apesar de já existirem o Opinião e o Movimento, onde também quase todos nós escrevíamos – resolveu criar uma editora, a Codecri, e chamou Jéferson Ribeiro de Andrade para dirigi-la. A primeira idéia de Jéferson foi publicar um livro policial de Otávio Ribeiro, seu primeiro best seller. O segundo livro da Codecri seria uma antologia de 12 contos da “novíssima” literatura brasileira.

Os escolhidos foram seis jovens contistas que estavam então se notabilizando por seu talento precoce: o próprio Jéferson, um jornalista combativo e escritor sem grande brilho; o poeta mineiro Antonio Barreto, 22 anos, que começava a escrever ficção; o paranaense Domingos Pellegrini, 28 anos; o carioca Julio César Monteiro Martins, de apenas 21 anos; o gaúcho Caio Fernando Abreu, 27 anos, e eu, 25 anos. Quando publiquei meu segundo livro de contos, Os Lábios Úmidos de Marilyn Monroe, pela Ática, dediquei-o aos seis, a quem chamava de “os paladinos do Oeste”.

Era uma turma legal que nada tinha em comum além do amor pela literatura e a revolta contra alguma coisa: Jéferson era naturalmente revoltado, por causa do mau-humor; Barreto, Pellegrini e eu éramos marxistas e queríamos derrubar a ditadura a qualquer custo, ainda que derramando sangue; Caio, infeliz, revoltava-se naturalmente contra a trágica condição humana; e Julio César, um burguês liberal, cujo talento tinha o mesmo tamanho, enorme, da vaidade juvenil, revoltava-se contra o fato de, aos 21 anos, ainda não ser considerado o maior gênio da literatura brasileira de todos os tempos.

O livro saiu com o título de Histó-rias de um Novo Tempo, ilustrado por Marcos Coelho Benjamin, hoje re-nomado artista plástico. Na época, imi-tava Crumb e já era genial. Avaliamos as ilustrações, no final de 1976, na casa de Ziraldo, sócio da Codecri, no Rio. Uma filha de Ziraldo, não me lembro se Daniela, tinha acabado de chegar do morro, onde comprara um tijolo de maconha na casa do músico Sérgio Ricardo. Chegara com o namorado, que se parecia muito com Gerald Thomas (ou era ele mesmo).

Histórias de um Novo Tempo saiu com 20.000 exemplares e vendeu tudo em 15 dias. A segunda edição, mais 10.000, também acabou logo. Antes de sair a terceira edição quase todo mundo já tinha brigado por algum motivo.

O que terá acontecido conosco? Primeiro, quatro dos “paladinos” foram ao Rio para dar uma entrevista ao Pasquim: eu, Caio, Julio e Jéferson. Barreto e Domingos não puderam ir. A entrevista saiu com trechos naturalmente cortados (para caber nas duas páginas do jornal) e Caio odiou. Escreveu uma carta ao Pasquim, que respondeu, como de hábito, mandando-o lamber sabão ou algo parecido. A partir daí ninguém se entendeu mais.

Tinha sido bom até ali. Nós, os seis “paladinos”, às vésperas da glória – sair numa antologia com as bênçãos do Pasquim – imaginávamos lançar um manifesto literário e até tentar repetir, em algum lugar (Rio, Belo Horizonte, São Paulo), a Semana da Arte Moderna de 1922! Acho que a idéia foi de Julio César Monteiro Martins, nosso maior megalômano. Trocávamos cartas febrilmente. Ansiávamos por nos conhecer pessoalmente, o que se deu com o lançamento da antologia.

Caio teve um livro – Pedras de Calcutá – lançado pela Alfa Omega. Posteriormente se desentenderia com o editor Fernando Mangarielo, que na mesma época lançou o best seller A Ilha, de Fernando Morais. As más línguas (ou seriam boas?) insinuavam que Mangarielo recebia uma subvenção de Moscou. Julio César e Jeferson saíram pela Codecri, que imediatamente publicou meu terceiro livro em dois anos, A Rebelião dos Mortos, que a Polícia Federal quis apreender e depois desistiu. Domingos foi publicado pela Civilização Brasileira. Fazíamos palestras e debates nas Universidades. As estu-dantes mais belas ajoelhavam-se a nossos pés. Éramos os grandes heróis da resistência.

No final de 1977, pouco antes de me mudar para São Paulo, ganhei um prêmio literário da revista Status, com Ricardo Ramos, Rubem Fonseca e Gilberto Mansur na comissão julgadora. Era um bom dinheiro. Deixei meu filho Alexandre, com oito meses de idade, com a avó e, com minha mulher Sylvia (um casamento já em crise), fui visitar Caio em Porto Ale-gre e Eduardo Gudiño Kieffer e Jor-ge Luis Borges em Buenos Aires.

Em Porto Alegre, hospedado na casa de Caio, Sylvia na cozinha, Caio disse que me amava.

Foi um choque. Eu tinha tido uma primeira, única e última relação homossexual (ativa) aos 16 anos, com um jovem artista que se transformou depois num astro da jovem guarda. Foi o bastante para decidir, definitivamente, que eu gostava era mesmo de mulheres e ponto final. Como dizer a Caio que eu gosta- va dele, mas não para fazer sexo?

Eu havia escrito, com minha completa ausência de censura, alguns contos com temática homossexual. Tinha dito a Caio que alguns eram autobiográficos e era verdade: contavam histórias do início da adolescência, quando um menino a caminho de tornar-se adulto ainda procura sua verdadeira identidade. Acho que Caio viu naquilo uma ponta de esperança: eu, com quem ele tinha tantos pontos em comum, principalmente a angústia exis-tencial, poderia ser o companheiro eterno de sua triste e solitária vida até então. Com o casamento em crise, quem sabe?

Ao longo dos anos eu perceberia que, apesar da amizade, algo se rompera. Eu era certinho demais, conservador demais, equilibrado demais – careta. Eu e Caio podíamos tomar chimarrão juntos, fumar maconha e beber chá de cogumelo alucinógeno, mas, na hora de compartilhar os corpos, lá ia eu para um canto, solitário e discreto. Não, aqui-lo não.

Mas formávamos um grupo e durante alguns poucos meses tentamos levar as coisas. Logo a falta de talento de Jéferson e o excesso de ambição do juvenil e impetuoso Julio César lançaram Caio numa neurose descontrolada. A reação jocosa do Pasquim diante de suas críticas – o jornal mandara-o “se roçar nas ostras” – deixou Caio amargurado.

Caio estava triste também por outros motivos. Julio César, o geniozinho simpático das cartas, na vida real era um mulherengo vaidoso que falava o tempo todo e não gostava de escovar os dentes e tomar banho. Domingos Pellegrini era marxista demais, um grandalhão saudável que a qualquer momento poderia pegar numa metralhadora e sair atirando em ditadores. Caio, tímido, sensível e frágil, via aquilo com horror. Jéferson era pequeno demais. Barreto sentia-se feliz com uma garrafa de cachaça ou um barril de chope: depois de certa hora, era impossível ouvir dele qualquer frase com sentido. Eu era, afinal, o único capaz de entendê-lo, de perdoá-lo por suas implosões depressivas. Eu jamais o mandaria se roçar nas ostras ou entubar um robalo, como fazia o Pasquim.

Julio Cesar, sobre quem Caio escrevera uma página altamente elogiosa a seu livro Torpalium, publicado pela Atica, no jornal em que escrevia – passou a ser o demônio. Poucos meses antes Caio comparava-o a Glauber Rocha. Julio dizia que Caio era “o Ney Matogrosso da literatura brasileira”. Aproveitei a dica e pus Caio na capa da revista Inéditos, em pose bem feminina, com esse título. Mas Caio já não suportava o que con-siderava, em Julio César, uma certa propensão para a intriga e o jogo do poder. Julio era muito jovem e Caio foi injusto com ele: isso tudo passaria, um dia, mas Caio não queria esperar.

A coisa degringolou quando, diante do inusitado sucesso de Histórias de um Novo Tempo, os velhos se-nhores e senhoras do arraial literário começaram a caluniar os jovens contistas. Por que aqueles seis, e não outros? Por que não tinham sido 10, ou 20, os escolhidos? E por aí vai. Disgusting, diria Caio. Cada um, então, seguiu o seu caminho. A editora Codecri cresceu rapidamente e desinteressou-se do best seller de autores tão complicados. O livro parou na terceira edição.

O que aconteceu conosco

Que destino tiveram aquelas pessoas? Jéferson dirigiu a Codecri até seu apogeu. Foi mandado embora porque estava ganhando mais dinheiro do que os donos do Pasquim. Foi para a editora Record e a Codecri faliu. Hoje Jéferson mo-ra em Belo Horizonte e escreve muito pouco. Antonio Barreto ga-nhou mais de 50 prêmios, publi-cou vários livros de poemas, foi trabalhar numa rodovia no Iraque, transformou sua experiência em um romance e hoje continua em Belo Horizonte, escrevendo para crianças. Pellegrini publicou meia dúzia de livros, herdou do pai a direção de uma seita religiosa, a Perfect Liberty, desapareceu de circulação e acaba de retornar à cena literária, com um prêmio Jabuti e novos livros no mercado. Deixou de ser comunista e vive tranqüilo em Londrina, no Paraná.

Julio César Monteiro Martins decidiu finalmente que ou o Brasil era muito pequeno para ele ou ele era muito grande para o Brasil. Aprendeu italiano, mudou para a Itália, onde é professor de literatura e lá já publicou dois livros. Em italiano.

Parei de escrever – não escrevo ficção há 20 anos –, exerci o Jornalismo por 17 anos e acabei editor de livros.

Caio Fernando Abreu escreveu e publicou vários livros, passou a vida sofrendo e morreu de Aids falando abertamente da doença em suas crônicas. Tornou-se um autor cult da comunidade gay. De todos nós, foi o melhor.





O texto foi retirado do site da Geração Editorial, as cartas que Caio trocou com Emediato podem ser encontradas .

Caio Fernando Abreu sobre Clarice Lispector

15:45 postado por Thiago Terenzi


Não é difícil perceber, em Caio Fernando Abreu, a influência da obra de Clarice Lispector. Como o próprio autor admitiu em carta, Clarice era o que havia de mais grandioso literariamente falando.

Caio conheceu Clarice e, com uma sensibilidade impactante – o que lhe era comum –, relatou suas impressões em duas cartas, sendo uma delas dirigida à Hilda Hilst. Esta, disponibilizo na integra; a outra, destaco apenas o parágrafo destinado à análise sobre a figura Clarice Lispector.





29/12/1970

Hildinha, a carta para você já estava escrita, mas aconteceu agora de noite um negócio tão genial que vou escrever mais um pouco. Depois que escrevi para você fui ler o jornal de hoje: havia uma notícia dizendo que Clarice Lispector estaria autografando seus livros numa televisão, à noite. Jantei e saí ventando. Cheguei lá timidíssimo, lógico. Vi uma mulher linda e estranhíssima num canto, toda de preto, com um clima de tristeza e santidade ao mesmo tempo, absolutamente incrível. Era ela. Me aproximei, dei os livros para ela autografar e entreguei o meu Inventário. Ia saindo quando um dos escritores vagamente bichona que paparicava em torno dela inventou de me conhecer e apresentar. Ela sorriu novamente e eu fiquei por ali olhando. De repente fiquei supernervoso e sai para o corredor. Ia indo embora quando (veja que GLÓRIA) ela saiu na porta e me chamou: - “Fica comigo.” Fiquei. Conversamos um pouco. De repente ela me olhou e disse que me achava muito bonito, parecido com Cristo. Tive 33 orgasmos consecutivos. Depois falamos sobre Nélida (que está nos States) e você. Falei que havia recebido teu livro hoje, e ela disse que tinha muita vontade de ler, porque a Nélida havia falado entusiasticamente sobre Lázaro. Aí, como eu tinha aquele outro exemplar que você me mandou na bolsa, resolvi dar a ela. Disse que vai ler com carinho. Por fim me deu o endereço e telefone dela no Rio, pedindo que eu a procurasse agora quando for. Saí de lá meio bobo com tudo, ainda estou numa espécie de transe, acho que nem vou conseguir dormir. Ela é demais estranha. Sua mão direita está toda queimada, ficaram apenas dois pedaços do médio e do indicador, os outros não têm unhas. Uma coisa dolorosa. Tem manchas de queimadura por todo o corpo, menos no rosto, onde fez plástica. Perdeu todo o cabelo no incêndio: usa uma peruca de um loiro escuro. Ela é exatamente como os seus livros: transmite uma sensação estranha, de uma sabedoria e uma amargura impressionantes. É lenta e quase não fala. Tem olhos hipnóticos, quase diabólicos. E a gente sente que ela não espera mais nada de nada nem de ninguém, que está absolutamente sozinha e numa altura tal que ninguém jamais conseguiria alcançá-la. Muita gente deve achá-la antipaticíssima, mas eu achei linda, profunda, estranha, perigosa. É impossível sentir-se à vontade perto dela, não porque sua presença seja desagradável, mas porque a gente pressente que ela está sempre sabendo exatamente o que se passa ao seu redor. Talvez eu esteja fantasiando, sei lá. Mas a impressão foi fortíssima, nunca ninguém tinha me perturbado tanto. Acho que mesmo que ela não fosse Clarice Lispector eu sentiria a mesma coisa. Por incrível que pareça, voltei de lá com febre e taquicardia. Vê que estranho. Sinto que as coisas vão mudar radicalmente para mim – teu livro e Clarice Lispector num mesmo dia são, fora de dúvida, um presságio. Fico por aqui, já é muito tarde. Um grande beijo do teu

Caio.





Porto, 22 de dezembro de 1979

Zézim,

[...]

Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de "meio doida”. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud.

29 de outubro a 5 de novembro 2009

23:06 postado por Thiago Terenzi

O blog mudou de cara. Deixou o layout ultrapassado baseado na resolução 800x600 e ganhou um novo corpo, tela 1024x768, mais interativo, web 2.0, – mas, confesso, também já é ultrapassado. É muito difícil navegar pela vanguarda da internet.

Além dos textos na página principal, há um menu secundário com outros textos: a biblioteca. A idéia é fazer dali um lugar para se guardar textos e impressões sobre grandes escritores. É a minha biblioteca. Nesta atualização, algumas coisas de Caio Fernando Abreu e Clarice Lispector.

Entrevista de Clarice à TV Cultura

18:05 postado por Thiago Terenzi

Clarice Lispector nunca gostou de dar entrevistas. Jornalista que era, sempre preferiu o outro lado: o de entrevistadora. É raro, muito raro, encontrarmos entrevistas da autora na imprensa escrita, mais raro ainda na televisão. Uma, porém, ficou famosa: a premiada entrevista que Clarice Lispector concedeu à TV Cultura pouco antes de sua morte, em 1977.

Anos mais tarde, na comemoração dos 30 anos da emissora, a entrevista foi reeditada e exibida num programa comemorativo apresentado por Gastão Moreira. Este programa foi postado no Youtube e, em contato com um grande público, hoje tem milhares de visualizações.

A entrevista é chocante. Como que para representar sua áurea misteriosa, o cenário é extremamente minimalista – escuríssimo, deixando em destaque apenas a autora sentada num sofá e um cinzeiro enorme em que Clarice repousa o cigarro. A entrevista é única, a cada resposta, uma atmosfera densa e misteriosa torna-se mais perceptível. Vale lembrar que o entrevistador é o experiente jornalista Junio Lerner, que conduz com incomum habilidade uma entrevista – na falta de outro adjetivo: difícil.










Clarice por Clarice

17:32 postado por Thiago Terenzi

Muito se escreve na tentativa de desvendar o mistério chamado: Clarice Lispector. Ela, porém, dona de uma densidade misteriosa, parecia não se deixar ser entendida – preferia desconstruir, implementar a dúvida. Propunha uma visão de mundo mais completa, superior ao entendimento das coisas. “Entender é sempre limitado”.

Talvez por isso, por essa dificuldade em entender seu universo particular – e normalmente temos esta necessidade –, talvez por isso é que existam hoje inúmeros livros, artigos, posts em blogs, etc que tentam explicitá-la. Um erro.

Na contramão dessa tendência, o site “oficial” da escritora destina uma sessão feita inteiramente de recortes de trechos extraídos do livro Aprendendo a viver (Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004.), em que a própria autora fala sobre si. Lançando mão de seu já consagrado estilo de escrita, Clarice nos revela muito sobre seus pensamentos e sua vida, mas a cada pergunta respondida, surgem outras várias. É que a intenção dela nunca foi ser entendida – era algo maior: ser sentida. Optei então por reproduzir aqui o texto na íntegra. Achei que estes recortes diriam mais e melhor sobre a autora que qualquer biografia ou cronologia.









A descoberta do amor


“[...] Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em apreender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado, longe de precoce, estava em incrível atraso em relação a outras coisas importantes. Continuo, aliás, atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais.


Até mais que treze anos, por exemplo, eu estava em atraso quanto ao que os americanos chamam de fatos da vida. Essa expressão se refere à relação profunda de amor entre um homem e uma mulher, da qual nascem os filhos. [...] Depois, com o decorrer de mais tempo, em vez de me sentir escandalizada pelo modo como uma mulher e um homem se unem, passei a achar esse modo de uma grande perfeição. E também de grande delicadeza. Já então eu me transformara numa mocinha alta, pensativa, rebelde, tudo misturado a bastante selvageria e muita timidez.


Antes de me reconciliar com o processo da vida, no entanto, sofri muito, o que poderia ter sido evitado se um adulto responsável se tivesse encarregado de me contar como era o amor. [...] Porque o mais surpreendente é que, mesmo depois de saber de tudo, o mistério continuou intacto. Embora eu saiba que de uma planta brota uma flor, continuo surpreendida com os caminhos secretos da natureza. E se continuo até hoje com pudor não é porque ache vergonhoso, é por pudor apenas feminino.
Pois juro que a vida é bonita.”

Temperamento impulsivo

“Sou o que se chama de pessoa impulsiva. Como descrever? Acho que assim: vem-me uma idéia ou um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o que me veio, ajo quase que imediatamente. O resultado tem sido meio a meio: às vezes acontece que agi sob uma intuição dessas que não falham, às vezes erro completamente, o que prova que não se tratava de intuição, mas de simples infantilidade.


Trata-se de saber se devo prosseguir nos meus impulsos. E até que ponto posso controlá-los. [...] Deverei continuar a acertar e a errar, aceitando os resultados resignadamente? Ou devo lutar e tornar-me uma pessoa mais adulta? E também tenho medo de tornar-me adulta demais: eu perderia um dos prazeres do que é um jogo infantil, do que tantas vezes é uma alegria pura. Vou pensar no assunto. E certamente o resultado ainda virá sob a forma de um impulso. Não sou madura bastante ainda. Ou nunca serei.”

Lúcida em excesso

“Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço. Além do quê: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano — já me aconteceu antes. Pois sei que — em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade — essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém.”.

Ideal de vida

“Um nome para o que eu sou, importa muito pouco. Importa o que eu gostaria de ser.
O que eu gostaria de ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta pelo bem dos outros. Isso desde pequena eu quis. Por que foi o destino me levando a escrever o que já escrevi, em vez de também desenvolver em mim a qualidade de lutadora que eu tinha? Em pequena, minha família por brincadeira chamava-me de ‘a protetora dos animais’. Porque bastava acusarem uma pessoa para eu imediatamente defendê-la.


[...] No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima.
É pouco, é muito pouco.”

Escritora, sim; intelectual, não

“Outra coisa que não parece ser entendida pelos outros é quando me chamam de intelectual e eu digo que não sou. De novo, não se trata de modéstia e sim de uma realidade que nem de longe me fere. Ser intelectual é usar sobretudo a inteligência, o que eu não faço: uso é a intuição, o instinto. Ser intelectual é também ter cultura, e eu sou tão má leitora que agora já sem pudor, digo que não tenho mesmo cultura. Nem sequer li as obras importantes da humanidade.
[...] Literata também não sou porque não tornei o fato de escrever livros ‘uma profissão’, nem uma ‘carreira’. Escrevi-os só quando espontaneamente me vieram, e só quando eu realmente quis. Sou uma amadora?


O que sou então? Sou uma pessoa que tem um coração que por vezes percebe, sou uma pessoa que pretendeu pôr em palavras um mundo ininteligível e um mundo impalpável. Sobretudo uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima quando consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana ou animal.”

A síntese perfeita

“Sou tão misteriosa que não me entendo.”

A certeza do divino

“Através de meus graves erros — que um dia eu talvez os possa mencionar sem me vangloriar deles — é que cheguei a poder amar. Até esta glorificação: eu amo o Nada. A consciência de minha permanente queda me leva ao amor do Nada. E desta queda é que começo a fazer minha vida. Com pedras ruins levanto o horror, e com horror eu amo. Não sei o que fazer de mim, já nascida, senão isto: Tu, Deus, que eu amo como quem cai no nada.”

Viver e escrever

“Quando comecei a escrever, que desejava eu atingir? Queria escrever alguma coisa que fosse tranqüila e sem modas, alguma coisa como a lembrança de um alto monumento que parece mais alto porque é lembrança. Mas queria, de passagem, ter realmente tocado no monumento. Sinceramente não sei o que simbolizava para mim a palavra monumento. E terminei escrevendo coisas inteiramente diferentes.”


“Não sei mais escrever, perdi o jeito. Mas já vi muita coisa no mundo. Uma delas, e não das menos dolorosas, é ter visto bocas se abrirem para dizer ou talvez apenas balbuciar, e simplesmente não conseguirem. Então eu quereria às vezes dizer o que elas não puderam falar. Não sei mais escrever, porém o fato literário tornou-se aos poucos tão desimportante para mim que não saber escrever talvez seja exatamente o que me salvará da literatura.
O que é que se tornou importante para mim? No entanto, o que quer que seja, é através da literatura que poderá talvez se manifestar.”


“Até hoje eu por assim dizer não sabia que se pode não escrever. Gradualmente, gradualmente até que de repente a descoberta tímida: quem sabe, também eu já poderia não escrever. Como é infinitamente mais ambicioso. É quase inalcançável”.

A importância da maternidade

“Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O ‘amar os outros’ é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca [...].”

Viver plenamente

“Eu disse a uma amiga:
— A vida sempre superexigiu de mim.
Ela disse:
— Mas lembre-se de que você também superexige da vida.
Sim.”

Um vislumbre do fim

“Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez. O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações. Não será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão. De tigre, eu preferiria. Meu corpo, esse serei obrigada a levar. Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como única valise, segue-me como um cão. E irei à frente, sozinha, finalmente cega para os erros do mundo, até que talvez encontre no ar algum bólide que me rebente. Não é a violência que eu procuro, mas uma força ainda não classificada mas que nem por isso deixará de existir no mínimo silêncio que se locomove. Nesse instante há muito que o sangue já terá desaparecido. Não sei como explicar que, sem alma, sem espírito, e um corpo morto — serei ainda eu, horrivelmente esperta. Mas dois e dois são quatro e isso é o contrário de uma solução, é beco sem saída, puro problema enrodilhado em si. Para voltar de ‘dois e dois são quatro’ é preciso voltar, fingir saudade, encontrar o espírito entregue aos amigos, e dizer: como você engordou! Satisfeita até o gargalo pelos seres que mais amo. Estou morrendo meu espírito, sinto isso, sinto...”
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